QUEM É O TOLO?

E eu que lentamente diluía o ar por sobre o parapeito da janela sem pintura,

nem desejava que esse momento terminasse.

Minha alma flutuava, misturada ao som dos pássaros e o roncar dos motores a diesel.

A algazarra dos meninos só me fazia lembrar que o fim de semana apenas começava.

E no êxtase desse instante; a cena do subúrbio infundia em mim a sensação de conforto

de uma vida perfeita.

Carros sendo lavados em pleno passeio público; cadeiras nas calçadas.

O subúrbio fervia.

Eis que surge então o tolo.

O tolo subia a ladeira do outro lado da rua, com passos lentos e aquele sorriso que sempre

o acompanhava. Cumprimentava a todos.

Um aceno, um aperto de mão ou um dedinho de prosa.

Assim era o tolo, e no encontro dos nossos olhares, atravessou a rua.

Igualmente cumprimentou-me.

Igualmente espontaneamente.

Igualmente tolamente.

Os meus olhos o escoltaram até a esquina; no alto da ladeira,

onde fica a banca de jornais, onde fica também o semáforo que nunca funciona.

Lá no alto da esquina fica ainda os muitos pares de tênis que enfeitam a rede elétrica.

E eu aqui, diluindo lentamente o ar, não desejava nem pensar nas tolices do tolo.

Mas, no ócio habitam as trevas, que insistentes me convidavam questionar a existência

de uma criatura tão pobre, tão sem sentido e da qual nem o nome eu sabia.

-Deus, o que vai pela mente do tolo?

Se despido de organização e lógica, há muito anda a litigar com a responsabilidade e a pontualidade dos afazeres diários. Piedade Senhor ao tolo, pois em sua existência frívola

falta-lhe a família; falta-lhe amor; falta-lhe dinheiro.

-Sim, eu sei meu Senhor é na velhice que precisamos de Ti; e veja meu Deus, o tolo já não

é tão jovem assim!

O tolo sorri, e não tem dentes!

Os filhos o esqueceram; a esposa o abandonou.

-Quem irá lavar as suas roupas?

Todo o subúrbio matou o tolo.

Os adolescentes desde cedo aprenderam a matá-lo.

Somente os cães o consideram, acompanham-no por onde quer que vá.

Gostaria que todas as pessoas fossem felizes.

Como eu, pois amo demais o entardecer.

Vejo antenas parabólicas e pipas no ar.

A minha vizinha colocou um portão de alumínio e trocou de carro.

E também é feliz.

Seria tão bom se todos os dias fossem assim; pássaros; motores a diesel; cadeiras nas

calçadas; pipas no ar; carros novos...

O tolo voltou de seu passeio.

Novamente cruzou a rua.

Igualmente cumprimentos e séqüito de cães.

Descendo a ladeira mais cumprimentos até chegar em seu barraco no fim da rua.

A vizinha; do carro novo; sorriu para mim quando ele passou.

Seu sorriso sarcástico me fez perceber que ela e eu somos ratos de um mesmo esgoto.

Envergonhado, fechei minha janela sem pintura.

Não sei porque nessa hora lembrei e tentei compreender o verso que havia lido no mural da fábrica que eu trabalho:

“no meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra”.

Cabisbaixo, relutando aceitar a verdade ofertada pela luz da compreensão que eu pensava

agora ser conhecedor, pus a me questionar: -Quem é o tolo dessa história?

Contive as lágrimas; lágrimas de desespero e rancor. Desperdicei desdenhosamente a oportunidade de ser melhor, respirei fundo e voltei ao parapeito da janela sem pintura.

Já não havia pipas no ar e os motores silenciaram por um breve momento.

Algumas cadeiras já não estavam mais lá nas calçadas; a banca de jornal no alto da rua,

os tênis na rede elétrica e no fim da rua alguém faz um aceno.

O tolo acena no fim da rua, no fim de tudo.