Com licença existencial

Nem Drummond nem Adélia Prado

Nenhum anjo me assistiu ao estrear

Não nasci para ser gauche feito torto

Muito menos de pedigree a desdobrar

Quando eu nasci, o sopro da vida viva

se lançou sobre mim e me fez conceber,

sob a égide dura e crua da crueldade nua,

que eu seria aquilo que viesse a me fazer

Hoje eu existo e sou quando posso estar

Nada aquém, acolá ou além desse em-si

Imperturbável eu posso rir o não cantar

Inconformado posso chorar e dar o sim

Coisa de anjo requer a fé estéril no cerne

O que me faz é o incerto sempre a querer

Coisa de crença entorta engessa e dobra

Prefiro a liberdade e nela o risco de viver

Prefiro quem entortou a estrada do Chico

Que a existência mesma nunca é linear

O que vale enfim é o cômico do trágico

O viver arriscadamente, sempre a amar

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NOTA: Brinco, aqui, com a possibilidade de um anjo com a qual Drummond, no seu "Poema de sete faces", também brinca: "Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida". Adélia, no poema "Com licença poética", penso, fez o mesmo: "Quando nasci um anjo esbelto, / desses que tocam trombeta, anunciou: / vai carregar bandeira. / Cargo muito pesado pra mulher, / esta espécie ainda envergonhada." Depois vem o Chico Buarque, com o seu "Até o fim" e, no meu entendimento, completou a festa: "Quando eu nasci veio um anjo safado / O chato 'dum' querubim / E decretou que eu estava predestinado / A ser errado assim / Já de saída a minha estrada entortou / Mas vou até o fim." Para mim, vale é a comicidade da coisa e a tragicidade da existência, a qual inclui liberdade e risco, e, portanto, a errática passagem pela Terra: crítica, crísica, inefável, ainda que eu possa rascunhar alguma garatuja sobre ela (Wilson).