Distrato da fome
a fome não prescreve.
como rasurar a vida
se nem tanto e pouco
é o que se deve?
a fome é intacta
nada que não seja tanto
lhe desarma.
a fome é avara,
tudo que lhe seja nada escancara
a vergonha de ser humana
na cara de quem cala.
a fome presta-se ao poema
como um quê intransitivo
que nem transige, nem constrange
o que se dera por arte sendo sangue.
É que a palavra
sempre se permite
a dizer-se esperança
mesmo quando em riste
é que os homens anoitecem
quando a manhã é pouca
e não se tenha do pão
como amanhar a desculpa
função que nem seja quanta
de quantas inda há
pra se inventar a luta.
a fome é invólucro
de uma carne inóqua e transitória
que tanto mais exista
tanto menos importa
a fome é uma instância
de um tempo inumano
de consumir os homens e a esperança
a fome não se contrata
seu projeto nem de longe se arquiteta
como um vão exeqüível de curvas e retas
antes é um aviso urgente
de quanto tudo não houve
a fome é bandeira
de escancarar o homem pela vida
e nunca é só desejo
apesar da desmedida