Trocos
Esta madrugada
fui visitar Deus.
Descendo a calçada
da rua mais triste
do bairro mais porco
da minha cidade,
um homem de idade
mandou-me parar.
Com pressa
de seguir o meu caminho
tentei comprá-lo
com trocos.
De mansinho
fechou-me a mão.
Com muito carinho
convidou-me a sentar
num banco de jardim.
Queria ouvir
a minha história.
Fazia colecção.
Não sei porque razão,
talvez porque corria
por correr,
talvez porque vivia
por viver,
talvez por desejar
deixar
um pouco de mim
num banco do jardim,
talvez pelo desejo tonto
de acrescentar
mais um conto
ao seu reportório,
pus-me a falar.
Por pudor,
ou por ronha,
por pavor
ou por vergonha,
ou talvez
por desejar
acreditar
naquilo que contava,
contei-lhe quanto amava
o homem que passava,
o jóvem que estudava,
o velho que jogava,
o puto que roubava,
o chefe que mandava,
o soldado que matava,
o cego que cantava,
a gaivota que voava,
o mendigo que pedia,
o poeta que escrevia,
o drogado que tremia,
o bébé que dormia,
o Sol que nascia,
o parente que morria
e o ladrão que fugia.
Olhou-me nos olhos
e sorriu.
Fingiu que acreditava
naquilo que contava.
De repente,
sem nada dizer,
olhou-me de lado,
indiferente,
como toda a gente
olha qualquer indigente
que passa.
E partiu.
Deixou-me só,
no banco do jardim.
A mim
e ao meu conto
de fadas.
A mim
e aos trocos
no bolso.
Pensei
trepar a pulso
a primeira Japoneira
do jardim.
Desejei mergulhar
no lago.
Beber um copo
num trago.
Dar um murro
ao parceiro do lado.
Deixar a minha história
onde estava.
Acreditar
naquilo que contava.
Deite-me no banco do jardim
e dormi.
Acordei como era.
Continuei a correr,
a comprar o sossego
com trocos.
No entanto,
um pouco de mim
ficou para sempre
nesse banco de jardim