Trocos

Esta madrugada

fui visitar Deus.

Descendo a calçada

da rua mais triste

do bairro mais porco

da minha cidade,

um homem de idade

mandou-me parar.

Com pressa

de seguir o meu caminho

tentei comprá-lo

com trocos.

De mansinho

fechou-me a mão.

Com muito carinho

convidou-me a sentar

num banco de jardim.

Queria ouvir

a minha história.

Fazia colecção.

Não sei porque razão,

talvez porque corria

por correr,

talvez porque vivia

por viver,

talvez por desejar

deixar

um pouco de mim

num banco do jardim,

talvez pelo desejo tonto

de acrescentar

mais um conto

ao seu reportório,

pus-me a falar.

Por pudor,

ou por ronha,

por pavor

ou por vergonha,

ou talvez

por desejar

acreditar

naquilo que contava,

contei-lhe quanto amava

o homem que passava,

o jóvem que estudava,

o velho que jogava,

o puto que roubava,

o chefe que mandava,

o soldado que matava,

o cego que cantava,

a gaivota que voava,

o mendigo que pedia,

o poeta que escrevia,

o drogado que tremia,

o bébé que dormia,

o Sol que nascia,

o parente que morria

e o ladrão que fugia.

Olhou-me nos olhos

e sorriu.

Fingiu que acreditava

naquilo que contava.

De repente,

sem nada dizer,

olhou-me de lado,

indiferente,

como toda a gente

olha qualquer indigente

que passa.

E partiu.

Deixou-me só,

no banco do jardim.

A mim

e ao meu conto

de fadas.

A mim

e aos trocos

no bolso.

Pensei

trepar a pulso

a primeira Japoneira

do jardim.

Desejei mergulhar

no lago.

Beber um copo

num trago.

Dar um murro

ao parceiro do lado.

Deixar a minha história

onde estava.

Acreditar

naquilo que contava.

Deite-me no banco do jardim

e dormi.

Acordei como era.

Continuei a correr,

a comprar o sossego

com trocos.

No entanto,

um pouco de mim

ficou para sempre

nesse banco de jardim

Manuel Paulo
Enviado por Manuel Paulo em 31/08/2006
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