EM PAGA DUVIDOSA

em paga duvidosa I

um rio de azeite escorre da colina,

por entre as águas... paisagem de energia

que motivou o flutuar da fantasia

e as águas não o aceitam... não atina

o rio de azeite qual a causa de sua sina,

pois ama as águas e misturar queria

suas gotas, uma a uma... espalharia,

pela amplidão dos sonhos da menina,

o seu oleoso poema nutritivo...

mas quando o vê, a água busca a areia

e quando muito, consegue desmanchar-se

em coágulos ilhados, em tal crivo,

por negar a natureza que o permeia,

a troco do prazer de enamorar-se...

em paga duvidosa II

tropeçando em degraus, corro ao futuro:

não é prudente conservar-me assim,

sem qualquer corrimão ou corda, enfim,

que me mantenha num lugar seguro.

pois quanto está à frente, ainda é escuro,

escorredios os patamares por que vim:

quer o passado iluminar-me a mim,

mas volto as costas a seu canto puro.

não me interessa o passado; como azeite,

eu desço lentamente a escadaria,

sem conseguir parar e sem vontade.

porque o presente escorre sem deleite,

enquanto a escuridão me acenaria

para um sonho transformar em realidade.

em paga duvidosa III

percebo que cruzei novo portal:

os meus horários se modificaram,

meus ritmos circádicos falharam,

na condução da vida natural.

estou dormindo mais, sinto-me mal

ao trabalhar os textos que mandaram,

os instintos que sempre os aceitaram

se rebelam agora a tal fanal.

é como se habitasse um novo corpo,

mais gordo e todavia mais saudável,

não me resfrio há mais do que dois anos.

por outro lado, sinto-me mais lorpo,

querendo apenas o útil e o agradável,

no jogo inútil de meus desenganos.

em paga duvidosa IV

escorre a vida em sulcos de papel,

irisados de lágrima e suor:

cada sulco causou-me um mal menor,

cada plantio foi colheita de ouropel,

desse suor transmogrifado em gel

recubro minha cabeça sem frescor:

cada sonho convertido em ilusor,

são milhares de soldados sem quartel.

aí estão eles, todos perfilados,

disciplinados às vozes de comando

da métrica, da rima e da cesura,

ao percutir do ritmo ativados,

em formação de assalto põem-se quando

toca o clarim azul da tinta escura...

em paga duvidosa V

quem diria, afinal, que a luz da aurora

eu pudesse recolher para mim mesmo?

já recusei esse horário feito a esmo,

hoje me ergui, depressa, à sexta hora.

não quero mais meu tempo jogar fora;

cortaram a minha luz, isto fez mo-

mentos se perderem, foi pez mo-

vimentado por lampião de outrora.

eu pretendia traduzir por longo tempo,

fazer render a biografia francesa

do grande ibsen, ideal da adolescência.

mas vieram os trovões, em contratempo

e a máquina apaguei, deixando-a ilesa

dos relâmpagos em fulgir de advertência.

em paga duvidosa VI

a chave rasga o bolso e o bolso a chave

embolsa em discutível segurança;

cada chave representa uma esperança,

cada bolso sepultura que se cave;

para o chaveiro o bolso é escura nave,

para o bolso o chaveiro é desgastança;

a nave busca o jogo da bonança,

no tempestuoso desgaste foge a clave;

retomo as chaves que o destino alcança:

são portais para abrir novas janelas,

mas guardadas no bolso nada abrem...

por isso as chaves, nessa fricção mansa,

vão desgastando o bolso como velas,

buscando a fuga antes que os dedos flagrem.

em paga duvidosa VII

zumbem zumbis e zombam lobisomens,

em carícia mordaz que não se acaba;

vampiros vampirizam rubra paga:

o sangue rubro de rubicundos homens.

a múmia muge em malfadadas fomes,

o trasgo invade a sepultura e baba;

a lâmia minha energia inteira apaga:

que tu, razão, as bestas-feras domes!...

esses fantasmas de puro malefício

são fruto do terror das lamparinas,

que a luz elétrica trouxe nova sorte...

são outros os terrores, puro vício,

arrebanhado do fundo das latrinas,

que a tv mostra, igual que fora esporte!

em paga duvidosa VIII

minha carne é repuxada, lado a lado,

por opções da rede e dos humanos,

como ao barbeiro de sevilha; insanos

são estes golpes, destino descuidado.

não que me queixe disso, procurado

eu justamente tenho, há muitos anos,

que meus trabalhos, em locais arcanos,

o mundo inteiro tivesse desejado.

mas eu queria não ter mais de dormir,

de modo tal a todo o meu dever

cumprir bem mais depressa do que agora,

comprando assim um pouco de lazer,

que não estou podendo conseguir,

por mais que me levante antes da aurora.

em paga duvidosa IX

nas sombras, eu me lavo diariamente:

banho fervente dessa escuridão,

que me penetra até o coração

e assim me purifica totalmente.

nas trevas eu me acolho, na frequente

ebulição da mente e da paixão;

durante o dia, perco a exaltação,

sou lobispoeta, em sonho irreverente.

é a luz da noite, então, que me ilumina:

minha sombra está em mim e vivo nela,

meu sangue é negro em tal circulação.

e nessas noites a lua então me ensina

a raptar as sombras que vêm dela

para escondê-las nos alvéolos do pulmão.

em paga duvidosa X

em cada leito, há um desertor da vida,

queimando as horas como a vida queimo;

a furtar-me do sono sempre teimo,

tal inimigo levando de vencida...

nesta longa vigília de minha lida,

em enfrentar minhas tarefas eu toleimo;

porém as horas vivas que requeimo

são devaneios em multidão perdida...

nessa recusa, porém, eu vivo mais

e me liberto dos sonhos imortais

que, bem ou mal, governam meus iguais.

a cada hora de sono, roubo versos,

neurônios num arco-íris são dispersos,

enquanto os pesadelos vivem mais...

em paga duvidosa XI

exausto assim de toda a santidade,

o cérebro conciliei com o cerebelo:

reis inimigos protegendo o mesmo velo,

pacificados, afinal, em humildade...

meu canto dissociou-se da verdade:

há mais pureza em imaginário selo;

que seja o feio gênio irmão do belo.

que seja o vero igual à falsidade!...

assim não busco mais, descrevo apenas

os farrapos de som que o olhar ofuscam,

na plena transparência dos antolhos.

plural é o mundo ao singular das cenas,

reais alucinações que assim me buscam,

nesses caroços de luz ante meus olhos.

em paga duvidosa XII

no jogo inútil dos meus desenganos

agacha-se a malícia, consternada;

em vão me julga mal, língua afiada:

eu sobrevivo aos talhos de seus danos!

minhalma remendou-se em novos panos,

farrapos de alegria avelhantada,

retalhos de tristeza renovada,

sem que as costuras se esgarcem nos enganos.

a paga é duvidosa, mas me basta,

já cansei de buscar por recompensa,

são apenas os meus dedos corredores,

na maratona desta estranha casta

de uvas que Dionysos me dispensa,

na embriaguez fecunda dos amores.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 04/05/2011
Código do texto: T2948289
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