"MADRUGADAS DE OUTONO"

“MADRUGADAS DE OUTONO”

Por Fernando Vieira

RJ. 05 de março – Outono 2004

Dobram os sinos de finados dentro de mim. Alguém morreu! Quem foi? Interrogo-me e pergunto aos meus jazigos interiores. Quem terá sido, desta vez? Fico atordoado com a descoberta! Desta vez, alguém morreu sem ter nascido! Foi um natimorto, ou um aborto? Esperança , quem diria, eu nem sabia que você existia!

RJ, 30 de março - Outono de 2004.

Aqui, na esquina da vida, quase dobrando a esquina, espero o bonde da história. Interrogo o horizonte, nada vejo. Outro olhar, outro e outro, nada! Estarei esperando no lugar certo? Quem sabe, já passou e não ví? Cheguei atrasado? Não virá nunca? Descarrilou? Quem sabe, não há bonde, pois não vejo nem os trilhos! De comum, neste lugar, só a dúvida, a incerteza, e a solidão.

RJ, 11 de abril – Outono de 2004.

Sou assim: um ser em mutação constante, uma surpresa a cada instante. Não sei quem sou, nem saberei jamais. Quem, olhando a constância do mar, viu, alguma vez, uma vaga igual a outra? Assim me vejo: como o mar, sempre igual e sempre diferente, imprevisível, caleidoscópio. O amor, a ternura, a dedicação, a solidariedade, podem dar lugar ao ódio cego, à fúria, à crueldade. Algumas horas estou sempre aí. Outras, não estou nem aí. Cultivo-me esmeradamente com o mesmo empenho que me destruo. Agora amo a vida, mas daqui a pouco, não sei, mas o que faço por essas bandas - que o digam o meu riso ruidoso e meu pranto silencioso, mas constante. É isso aí: sou constante até na inconstância. Para onde irá a energia que me move? De onde vim, para onde vou? Imagino o que sobrar de mim, se é que algo sobrará-habitando outros mundos.

RJ, 20 de abril – Outono de 2004.

Hoje, desci aos meus infernos. Buscava encontrar e resgatar a solução do meu conflito. Uma saída, uma saída! Tanta coisa ví lá! Em primeiro plano, apareceram carências atávicas. Pior ainda, ví uma incapacidade inata de satisfazê-las. Um medo também ancestral, uma culpa remota, antiga. Ah, meus demônios, vocês não são criativos! Sempre me empurram para o mesmo caminho: a fuga. Vocês me apavoram para continuarem no mesmo lugar, dominando a cena. E minhas defesas são um fracasso. Fujo para lugar nenhum, e ao que parece sempre em direção oposta, àquela que me levaria a resolver de vez, tudo isso.

Onde encontrar o que busco se não sei o que procuro? Sei que anseio por algo que nem sei se existe. De real, só a angústia, o poço sem fundo, o vazio de minha vida. Pior: quando imagino achar o que quero, acende-se a luz vermelha de perigo e fujo. Se buscar e fugir são a mesma coisa, estarei condenado à insatisfação eterna. Pois só não quero o que tenho, só fujo do que é possível e jamais terei o que quero.

RJ, 28 de abril – Outono de 2004.

Descobri que tenho uma carência abissal. É algo antigo, ancestral, que surge de minhas entranhas, com uma ânsia jamais satisfeita, por mais que eu dê ou receba. Semeio afeto na tentativa de receber migalhas de amor. Sou uma goela faminta, um poço sem fundo, filho bastardo do desencanto, em eterna busca de algo que não existe.

Estarreço-me com minhas contradições! Habitam em mim Deus e o Diabo, ternura e crueldade, fera e anjo. Como me entender, pois, se ora sou um ora outro, se quero coisas opostas, impossíveis de conciliar? Só em ti amor, juntei os meus pedaços, senti-me uno, inteiro, completo. Mas esbarro, então, com a inevitabilidade dos fatos: quando me integrei, a vida nos separa. Eis-me diante de meus postos, começa tudo, outra vez!

Ponho-me a jorrar feito um chafariz. Despejo minhas emoções mais escondidas numa catarse irreprimível. Mais que um desabafo, é um vômito que jamais se esgota. De onde surge tanta dor, tanta paixão, tanto sentimento? Onde está a origem do que não tem fim? Quero parar, meu Deus e descansar como todo o mundo. Ser um pouco triste, meio alegre, medianamente imprevisível, até certo ponto sensível. Sem exageros. Como qualquer pessoa normal.

RJ, 02 de maio – Outono de 2004.

Faltam apenas três dias, sinto o peso dos anos nos ombros, 56 anos se passaram, o que fiz?. Deus esteve sempre ao meu lado, me deu a mão nos piores momentos e pouco agradeci. Minhas emoções sepulcradas esperando um dia ressuscitarem. Com quem? Por quem? A quem devo tudo isso?. Sinto-me numa solidão profunda, a cada ano, indefinível, atópica e bovarista.

Faltam apenas três dias, posso imaginar os telefonemas que preferia não receber, quero ficar quieto no meu canto em desencanto com os humanos, desumanos, desluzido, desvalido, preferia a companhia silvestre em seus sons, suas cores no silêncio de um dia como outro qualquer. Procuro encontrar mil formas de dizer a mesma coisa. De falar mil vezes o que me invade de mil maneiras: um amor mil vezes maior que a minha sensatez. E procuro encontrar ao menos uma esperança. Aí está a dificuldade e a falta de criatividade.

Faltam apenas três dias, unimos nossos cordões umbilicais. Casamos nossos santos. Contrariamos as leis da física e nos superpusemos, ocupando, com dois corpos, o mesmo espaço. Abolimos nossa individualidade e, por incrível que pareça, isso nos agrada. Tudo é infernalmente paradoxal, porque nossa realidade é distância, solidão, ausência, saudade, carência.

Faltam apenas três dias, meu mundo era sem cor, sem graça, em preto e branco e raros detalhes cinza. Vieste colorir meu mundo com cores puras, intensas, fortes. Meu mundo ganhou luz, beleza, rutilância. Olhando meu mundo agora, constato: a coisa está preta!

Faltam apenas três dias, eis-me de volta ao meu ciclo vicioso. Começam em sonhos, ilusões, fantasias, crenças, esperanças, certezas, descortínio de um mundo azul, com um mar azul, um céu azul, onde voam livres, gaivotas azuis. De repente, a primeira nuvem no horizonte, outras e outras mais, se avolumam e enegrecem, anunciando a tempestade. Que cai e destrói todos os castelos de areia tão penosamente construídos. Que afugenta as gaivotas para muito longe, que encapela o mar, que esconde o céu. E, no escuro, as coisas ficam mais claras - castelos de areia têm que ruir mais dia, menos dia. O céu não é azul e as gaivotas não são livres. O mar, que me acolheu, me colocou à margem. E assim estou eu: à margem da vida, participando de uma pantomima, sem refúgio em crença de qualquer espécie. Por que não aproveitar a borrasca e me afogar de vez? Prefiro perder-me na tempestade a ver, daqui a pouco, o céu novamente azul, o mar, as gaivotas, os sonhos...

RJ, 03 de maio – Outono de 2004

Tudo dorme. As pessoas, animais, a natureza. Eu velo, rodo e rolo como um carretel que enrola e desenrola, sem começo e sem fim. O relógio também não para e parece gritar: Dorme! Lá fora, o silêncio, a paz. Aqui dentro, meus neurônios fervilham em dança louca, resolvendo os problemas do mundo. E o mundo continua em sua roda, rodando e dormindo, com seus problemas irresolvíveis. Ah, a inutilidade desta dança! E a impossibilidade de parar...

Não dormi, hoje pareço um zumbi! Preciso juntar agora os pedaços, porque hoje, hoje, tenho que pensar claramente e muito! Ah, que vida, que vida! Chegarei vivo ao fim do dia? Não vejo a hora de chegar até o próximo fim de semana...

Ser criança, eu queria, passear com meu caminhãozinho, de madeira, pelos bosques verdejantes, nos meus caminhos secretos, numa tarde de outono, cai a relva sobre o tapete de folhas douradas, sopra um vento úmido, faz frio, sinto saudades da minha infância dourada, dos meus amigos, da minha mãe, do meu pai...

Pai, passaram tanto anos, longe ficastes e longe estás... mas sempre perto de ti em pensamentos, e agora, perto ficarás, da sua amada, minha mãe, e de todos nós, seus filhos... Obrigado Deus...

RJ, 08 de março - Outono de 2007

Querer é poder, Coisa de deuses. Eu, pobre mortal, faço o que posso, não o que desejo. A essa limitação deveria acompanhar conformação. Ora, mas as coisas não são como devem para o pobre mortal. Como devem, só os deveres! Neste caso, eu poderia ser inconformista. Aí, por querer mais do que posso, poderia perder o pouco que tenho. Bem: se não devo querer, o que quero, se não posso querer, o que devo, nem me limito aos deveres, vou me conformar com o inconformismo, ora...

RJ, 15 de abril - Outono de 2007

Já se passaram exatamente três longos anos, vários outonos se foram , passei simplesmente por eles, nada aconteceu, e tudo aconteceu, troquei figurinhas, conheci pessoas, decepcionei-me com algumas, outras simplesmente passaram, chorei, sorri, outras ficarão para sempre em meu pensamento. Recomeçam os planos, sonhos, ilusões, fantasias, crenças, esperanças, certezas...

RJ, 28 de abril – Outono de 2007

Pesa-me sobre os ombros uma responsabilidade singular, somente minha, incrivelmente solitária, responsável pelo sucesso ou fracasso dos meus planos, dos meus sonhos. No sucesso, terei vários parceiros interessados em partilhar, participar e comemorar, e no fracasso , sentarei numa mesa sem parceiros, sozinho e degustarei o menu, amargo e azedo, destinado exclusivamente a mim, não terei ninguém para trocar palavras ou expressar meus sentimentos- Mas certamente estarei comemorando o sabor e a vitória de exercer o poder de mais uma tentativa, que somente eu, solitariamente, saberei entendê-la.

RJ, 01 de maio – Outono de 2007

Dia do Trabalho – O Dia Mundial do Trabalho foi criado em 1889, por um Congresso Socialista realizado em Paris. A data foi escolhida em homenagem à greve geral, que aconteceu em 1º de maio de 1886, em Chicago, o principal centro industrial dos Estados Unidos, naquela época.

Observo pessoas que apressadas nos centros das grandes cidades trazem a expressão da angustia e sofrimento estampadas no semblante, igualmente dá-nos a dimensão que não mais existe lugar para a felicidade no mundo contemporâneo.

A angústia humana, cada vez mais cáustica, está aliada a degradação humana imposta pelas adversidades econômicas das sociedades contemporâneas. As pessoas estão cada vez mais avassaladas com o espectro da solidão: a angustia parece adquirir dimensão irreal diante do sofrimento. Viver parece tornar-se um peso insuportável para um número cada vez maior de pessoas.

Hoje está um dia nublado, próprio para a catarze dos pensamentos que angustia as pessoas em suas ansiedade frente às incertezas dos sistemas sócio-políticos, seguramente é um dos indícios da forma e dimensão que toma as agruras da existência do homem contemporâneo. O homem contemporâneo busca suas realizações na estruturação material, sem ao menos perceber que esse tipo de realização não preenche o seu vazio interior.

Felicidade é ausência de prazer. Ser feliz é o que todo ser existente deseja. A felicidade, no entanto, está cada vez mais distante do alcance humano. Parece ser permitida apenas e tão somente às crianças na medida em que existe toda uma propulsão social no sentido de levá-las ao seu encontro, o adulto parece não mais ter direito a ela.

RJ, 25 de julho – Inverno de 2007.

Chove lá fora, tempo nublado, faz frio, é noite – as luzes se acendem e mais um dia se passou - e essa noite como será? passiva como sempre, ou ativa, incomum atualmente, nada acontece de relevante, para bom é claro.

Essa tarde fria ligou alguns poucos e bons amigos, convidando-me para eventos em agosto, nada especial, mas já massageia o ego, que anda frio como esta tarde. Que bom, ser lembrado.

A noite pede um bom vinho, tinto e encorpado, bom para as noites frias e um bate papo com amigos mais íntimos, que delícia. Poderá ser uma noite memorável, que jamais se repetirá - pelo menos igual a essa.

RJ, 06 de agosto – Inverno de 2007.

Hoje o céu está negro, nuvens pesadas, carregadas, breve derramarão seus lamentos na terra, provavelmente esbravejando algo gutural, ininteligível, que não entenderemos, protestará contra alguma coisa que não saberemos.

Assim estou eu, inundado com meus lamentos, chorando por dentro, sem poder esbravejar, pois seria denominado de louco, enraivecido, desestruturado, desequilibrado...mas aqui estou eu.

RJ, 13 de agosto – Inverno de 2007.

Felicidade é o encontro de almas sedentas de amor, afagos e beijos, carências supridas, energias trocadas e tocadas volúpias, é suspirar em dobro, amar por dentro, um abraço apertado, um cheiro de folhas secas que o vento leva numa dança rítmica de carinho.

Amor profundo, amor sentido, amor solar, ardente como fogo, e a espuma do mar revolto e a areia que cobre os seus pés.

Hoje é dia de luto. De prantear perdas, de vasar a alma pelos olhos. De morrer em vida e de viver a morte. Hoje o dia é negro, apesar do sol. Tremo de frio, apesar do calor. Escureceu o mar e me afogou. Sinto-me um pássaro negro voando cego em céu escuro. E, por cima de tudo, um cansaço imenso. Carrego nos ombros o peso do mundo. Já basta, meu Deus, cansei! Chega!

FERNANDO VIEIRA
Enviado por FERNANDO VIEIRA em 14/08/2007
Reeditado em 14/05/2011
Código do texto: T607149
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