Viver

Ainda que de repente se morra
Não se morre de repente
Se se morre, a morte vem aos poucos
Para aos poucos se ver a morte chegar
E há que se cuidar para que morra completamente quem tanto amamos
E tanto seguramos para conosco ficar
Coisificamos a pessoa
Nas coisas em que a personificamos.

Vestígios são rastros
Rastros se tornam relíquias
Relíquias são resistentes vestígios
De quem partiu
e partindo, tornou-se parte em nós
e partidos tornamo-nos o ser nas coisas
que eram coisas de quem se foi,
mas em se indo ancorou-se no lago confuso
entre o partir e o ficar

quem partiu nos partiu
e se repartiu no que não pode levar

Há quem jamais conseguirá morrer
Há quem jamais, até que morra, deixará o outro morrer em paz
Há quem mata, aos poucos, quem ama em vida
E depois a ressuscita nas coisas nas quais vida não há

Não sei se se morre quando se morre...
se se morre quando se vive para o ter...

se o ter e o ser se confundem
risco haverá de se viver depois da morte nas coisas que em sendo coisas que se tinha
por não terem vida não morreram
e por não morrerem
retêm a vida de quem poderia morrer em paz

Ao deixarmos morrer as coisas que não têm vida
de quem vida já não tem
Poderemos viver plenamente a morte de quem ancorou sua vida em nossos corações
E viver em vida a vida que se tem
Tendo o que se é
e não sendo o que se tem