Lição de coisas e outras coisas

***Rua de antes de outrora***

O ônibus sacoleja, quente e apático

Nada – praticamente nada – está mudado

(ou eu não dou por isso)

Não aqui...

Há quanto tempo terei passado por aqui?

Talvez há uma década...

Talvez mais, talvez menos, talvez...

O certo é que nada dá por isto (quer eu tenha passado aqui ou não)

Nem por nada. Por que as coisas são o que são.

E são inúteis ou úteis a tempos diferentes.

Fecho os olhos, quentes do Sol que não vejo

Mas que cai sobre os meus sentidos

Plausível e nítido como um fato qualquer.

Tento me lembrar a quanto tempo passei por aqui...

Mas não posso lembrar-me...

Por que o que fui já não sou (se é que fui em mim)

E o que sou hoje presentemente

É como se nunca soubesse (e talvez não saiba!)

Do que fui anteriormente. Conheço-me

Como superfície, em cima e abaixo, e não sei o duplo de quem sou.

Abro os olhos, quentes do Sol que sinto

E sei que existe, por que o sinto.

Pensar é sentir, e sentir é saber o que existe simplesmente.

E é possível mesmo se fazer a realidade desta rua sem nada disso.

Mas esta rua... Por ela subi um dia.

Dias em que eu era jovem para sempre (sem o ser já no momento mesmo em que sentia sê-lo)

A cabeça florindo ilusões coloridas, de um futuro porvir, venturoso...

As flores murcharam, as ilusões desbotaram, e o futuro chegou.

Chegou apenas. E dura. E demora-se.

O que fica, passa, transformando-se em passado já!

Hoje desço a mesmíssima rua

E passo, com os sentidos tão abafados

Como o Sol que se esconde para as gentes, mas que está lá.

E eu sei dele. Da rua, das casas e do ônibus que sacoleja pela eternidade...

Olho indiferentemente para tudo isso.

Diviso casas , mais gentes, outros ônibus

Todos sem metafísica nenhuma!

Olha que a maior metafísica é ela não estar em nada que pensemos ou sintamos.

O meu ser moderno esquece-se do velho

E o velho nunca existiu agora, porque não sei mais vestir o que fui.

Cumprimento o que sou e um apito estala

Dentro da minha cabeça

Sei (e saber o que será?) que é hora de desembarcar.

Novos lugares, gentes igual á outra, edifícios, talvez...

Não quero imaginar mais nada...

Nem o que sou hoje nem o que foi outrora do que fui.

Observo que já nascemos todos a bordo da vida.

E que o mundo é pequeno e sem essência.

E que a forma de viver é a mesma em tempos diferentes.

E que aquela rua, como tantas outras

(iguais ou não, quem sabe)

É a mesma de antes de outrora.

Passamos. Passei. Passo.

E isto também não é nada

Dentro da existência absurda e simples

De a ser e não sabermos disso.

*** Sem Título ***

A paz é o mar

Quieto, solitário e vasto.

E é boa porque embota os sentidos

E nos tira de estarmos distraídos.

Com ela, até o futuro se olvida.

Mas o amor... Ah...

Esse não! Nos põe umidade no ser.

Oprime porque ilimita.

E nos traz consciência da finitude desse mesmo querer

E da própria vida.

Por exemplo, o homem da televisão

Que vende tapetes persas.

É só um homem que vende tapetes persas.

Mas se eu me distraio e entro no sentir

Ele já não é só o homem que vende tapetes persas.

Ele é o querer, o arfar

O símbolo do ser humano.

A miríade do ser inexplorado,

O ideal.

O significado, enfim... Já não é o que é.

Já não tenho a fria liberdade

Das montanhas ermas sem nada.

E já não consigo esquecer o que me lembro.

Não sei emudecer e apenas estar,

Quieta e lúcida, como o pó não agitado duma estrada.

“Suave é viver só”.

Sem metafísica, sem filosofias vãs

A nos colocar idade, antes da idade, no ser que somos

E amargo deletério na nossa objetividade.

O que é nobre e elevado o é assim porque não pensa.

*** Lição de Coisas ***

O sábio diz que viver é viver apenas.

Nada mais. Devagar. Sem pressa.

Aceitar a transitoriedade do que somos

Com fé sem fé.

Vendo tudo como é sempre, novo.

Para quem observa o imarcescível das coisas

O fim jamais chegará; não em vida.

E tudo é e será assim como é e tem de ser, mesmo se não gostarmos.

A realidade não precisa de nós.

E mais vale saber estar silenciosamente

E sem desassossegos grandes n´alma.

Fitar as coisas e aprender delas o curso vital e sábio de quem para elas observa.

Sem ódios, sem afetos áridos e tórridos, cheios de desvãos

Que nos levantam a voz. Nem invejas

Que põe um amargo para sempre no paladar. Nem caprichos,

Nem cuidados que nos fazem correr e não ir ter em lugar algum além do que já estamos.

Ou penar em pensar ser o que não existe para o sermos

Pela única grande razão de sermos sempre nós próprios.

Não desejar mais que depois do frio estar ao sol

Quando este houver.

Ou sobre a cobertura

Se houver chuva. Só isso.

E não outra coisa.

Sem lembranças de significados que nos ardam, firam ou mova.

Afinal as coisas todas

Não são tão expressivas e plenas

Para os que empenham-se em estar distraídos em senti-las

E não apenas em estar a observá-las.

Ninguém nos desapareceu, ou apareceu

Em data especial alguma.

A realidade, com as coisas todas que existem, e estão sempre presentes

Apenas existe, e está presente. E não outra coisa diversa disto.

Só o ser humano deifica a si mesmo.

Mas as coisas, essas não. As coisas têm existência, não sentido.

E sua falta de essência é o seu único significado oculto.

E por isso são eternas

Por que não sabem o que seja esperar por algo que não virá, nem dão por isso.

*** Melancolia revisitada ***

“A paciência é dos virtuosos” me disseram um dia.

Então eu não sou nem virtuosa, nem coisa nenhuma

Que seja isto. Ter virtude é como não entender o que se é sendo.

Uma vez estive aos montes.

E não vi nada, nem vislumbrei o que quer que fosse através do que vi.

Só via o que enxergava. Árvores e folhas só. Mais nada.

E não será isso tudo o que há para se ver?

E não será esse nada em tudo o que há para se saber do que “sabemos”?

Então não tive paciência afinal, por que não vi o que queriam que eu visse?

Oh! Estou farta de virtudes!

Vão para longe sem mim, ou deixem que eu vá para longe sem vós!

Por que teria eu de ir ter convosco ó virtude?

O que tem sido a minha vida

Senão ver, e saber absolutamente das coisas que enxergo?

Inacreditável presença na absoluta ausência anímica das coisas nelas mesmas?

Melancolia de fundo, intratável

Por que sei o que sei

E não o que gostariam que eu soubesse (ou pensasse saber, como eles que o não sabem)

Falta virtude para viver? E por que não consigo pensar em nada que seja isso?

Oh não, obrigado! “Finais felizes”... Hoje não!

Volta amanhã realidade!

E minha lembrança será sempre a de mim: uma pagã insciente a margem da falsa virtude!

*** Quadra popular ***

Uma vez julguei que amava alguém

Julguei também que este alguém me amava.

Mas nunca me amaram afinal.

E afinal as coisas têm a grande e única razão de serem ou não serem.

E estão certas e são boas por que não se importam em sê-lo.

Nós é que queremos ver por elas o que elas mesmas não dão.

*** Mote Fútil ***

Ó dias venturosos!

Em que eu ia conduzindo o tudo que eu imaginava

Pela estrada de nada, que não tinham me forçado ainda a ver.

E em que eu era feliz por não saber disso.

*** Bom bordo ***

Aqui se pode estar em paz!

Se pode estar sossegado!

(E estar sossegado o que é?)

Eu não quero pensar em coisas como essa.

Por que pensar em coisas como essa ou outra

É como estar doente dos sentidos.

E como acordar e não saber se sonhamos a realidade

Ou se é a realidade imaginação subjetiva.

Estou como estou

E isto é, afinal de contas, bom.

Não quero pensar o que não seja.

Não quero imaginar além mares de mares em que nunca estive ora bolas!

Não quero tampouco iludir-me.

Nem quero assegurar-me do que seja real e factício.

O que é real e factício disseram-me que é também ilusão.

Então, se é assim, não quero imaginar nada.

Quero apenas estar só.

Entendam! Não me macem por amor de Deus!

Ser só. Apenas isso.

Não dêem significado ao significado que eu mesma não dei.

Deixem-me como estou.

E assim estarei bem.

Por que não procurei coisa alguma, não encontrarei mesmo nada do que não há.

E pertencerei assim a uma religião que só os homens desconhecem: a das coisas.

*** Relicário de dias ***

Nos dias em que eu era jovem,

E essa juventude em mim era eterna

Por que eu não sabia que o eterno, em nós,

Não existe de verdade.

Eu era plena, completa

E a vida nada me acrescentava,

Nada me suprimia

E eu não dava mesmo por essa sutileza.

Nos dias em que eu era jovem,

O passado era já olvidado

E o futuro não existia.

Simplesmente eu ia por aí a fora.

Disparate? Impossibilidade? Sei lá eu...

Eu “era” eterna como as coisas

A minha volta, em torno de mim

E meu coração era uma ânfora funda...

Da qual eu puxava para a superfície e deixava vazar

Apenas os bocados precisos.

Mais nada.

Só o que era preciso eu puxava.

Mas a ânfora se partiu excessivamente

E os cacos ficaram no tapete por sacudir.

E os que se fazem deuses para si mesmos num Olímpo

Ficaram a olhar os meus cacos excessivos, lá das suas orbes.

Já não podia tirar os bocados precisos,

Escorria um líquido negro e amaríssimo.

Todos maldisseram minha alma.

“Que fel!” Diziam. “Que embuste de nadas”!

Tudo isso por que

Nos dias em que eu era jovem

Não me importei em trazer para fora

Senão apenas o que era preciso, necessário...

Mas não o que deveria ter puxado.

E o limbo todo foi ficando lá, no fundo, se condensando.

E quando a ânfora do meu ser se partiu em mil pedaços

Já não havia nada a tirar, a não ser o que não queriam.

Mas hoje, já não sou mais eternamente jovem.

E ninguém quer o que eu sou.

(Pensaram em querer o que eu fora? Ou alguma outra coisa que não fosse eles mesmos?)

Oh complacente e vazio céu!

Verdade perfeita, sem nada, nada!

O que sou hoje é ter se quebrado a ânfora em que eu estava imbuída.

É terem morrido todos, mesmo os que ainda não morreram.

É a umidade no fim do meu ser que me deixa fria e apagada,

Como um fósforo que já usaram

E que por essa mesma razão não serve mais para nada.

E o que não serve não está mesmo a serviço de coisa alguma.

E acabou.

Tudo podemos imaginar do que nada sabemos.

Mas, quando sabemos de tudo já nada podemos imaginar, mais nada (ou não queremos).

Hoje já não sou jovem.

Passamos tanto, tanto tempo sendo velhos. E serei velha quando o for.

Raiva de não ter trazido no bolso, escondido, o passado!... (mesmo que ilusório, coração!)

*** Mote Fútil II (Por falta de imaginação melhor) ***

Esquece coração!

A vida, enfim, nem vale tanto!

É. Mais afinal que vale também

Essa poesia que tu resvala?

E valer alguma coisa é lá o que,

Me digam!? Se forem capazes!

Mas não o são não!

Todos se calam, compreensivos, tolerantes, excessivos.

“Deixa ela! Não sabe o mistério das coisas. Deixa!”

O único mistério é haver quem pense que há mistério

Nas coisas, por dentro e através delas!

Valer. Ter valor!

Oh que coisa vã!

E não são vãs as coisas?

As coisas todas?

Cansaço só, e uma amargo que sabe a ferro na boca?

Valer! Ter valor!

Ah, deixem-me não valer nada.

Nem dar por nada que tenha valor,

Ou que achem vós que não tenha mesmo!

Esquece coração!

Vá lá, esquece!

Deixemo-nos ficar, sem valor, sem ideias, sem significação

Como o vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras.

*** Cancioneiro ***

O pastor vai pelas encostas ermas

A meditar nas ovelhas que estão a sua frente.

Só nelas medita.

Por que ele só pode nelas meditar, é seu trabalho.

E ele faz o seu trabalho apenas, por que, senão, o que faria?

Quando a encosta se mostra plaina

E repleta de ramagens hirtas e acariciantes

Então ele se deita ao largo

E já não pensa nas ovelhas, que estão pra lá.

E não pensa porque elas já não estão ali para serem pensadas.

Agora só há o sol e o céu, vazios. E nisso ele passa a por sua mente (Por apenas).

Mas, se ele fecha os olhos

Já não há sombra de nada.

Nem de ovelhas, nem de sóis, nem de céu.

É ele mesmo para si.

E ele mesmo não é nada. Por que a matéria se foi

Com os olhos cerrados para a ver.

“Que vida besta!” Diriam.

Mas a vida só é assim besta para quem se ocupa em pensá-la.

Mas o pastor não se ocupa em pensar a vida.

Nem o que seja a matéria que ela imbui (É o que dizem!)

A realidade é, para ele, assim como

As encostas ermas, a relva hirta e acariciante...

E as ovelhas são ovelhas apenas!

Estranho desígnio de as coisas serem sempre elas mesmas

Quando as olhamos sem desassossego.

E olhar uma coisa para ver o que não há é novamente, e afinal, estar doente dos sentidos.

Por isso o pastor fecha os olhos.

Ele não está doente dos sentidos.

Inda menino o pai chamava, dizia:

“Menino, aprende que a vida é o campo,

E as ovelhas, e as encostas ermas,

E as planícies mudas e vazias.

E que isso é tudo o que há no mundo.

E gentes, a viver tudo isso!”

Então, homem feito,

Procurava ver e entender apenas essas verdades perfeitas,

Indissolúveis, por que tão reais. Tão ali.

“Também – pensava o pastor – se não for isso

Não deve ser coisa alguma. E o que eu não procurar

Enxergar e saber, com os meus sentidos,

Simplesmente não existirá para mim para que eu o saiba!”

Se as ovelhas voltam

Fartas de pastar o pasto de sempre,

Voltam ao mundo, que é o campo.

E o pastor também a casa retorna.

Que sempre retornamos de onde nunca saímos.

E pensais tu: Ora poderemos acaso sair se não houver para o que retornar?

Ou se isso não for valer mais a pena que ficar ou partir?

Mas o pastor não pensa em nada disso, ele é só o guardador dos seus rebanhos!

E enquanto for assim ele será verdadeiro e vazio, como o céu e o sol.

*** Sem Título ***

“Tudo passa sobre a terra”.

Disseram-me um dia

E eu fiquei confusa,

Pois não sabia o que era o “tudo”, nem onde estava ele.

Se o tudo é a vida

E mais o que temos dentro dela

Então ele não é nada

Nem a Terra por sobre a qual ele pesa, mas passa.

“E por que não é nada o tudo que é a vida?” interrogar-me-ão.

Pela única razão de que

Se a vida é tudo

Então ela não está em lugar algum, nem passa sobre tal lugar.

Se o tudo é a vida, como dizem os senhores

Então não só ela não existe

Como não pode mesmo ser concebida

Quanto mais em um espaço tão amplo como “tudo”

Direis: “Isto é apenas jogo de palavras, e nada explica”

Mas, se olhares, ou melhor,

Se ouvires a sussurrar dentro de ti

A verdadeira existência das coisas

Entenderás o que digo

Pois que digo que

“Nada pode passar onde nada existe”

A vida é ela só, não o “tudo”

A Terra, é ela só

A saber, as pessoas todas com vida

Vivenciando o que vivem

E não passam, pois que vivem e existem para outras gentes

Depois e antes de nós, sempre.