PÉ DE CACHIMBO (OU PARALELEPÍPEDOS)
 
 
Gosto muito das ruas de paralelepípedos.
Como me são caras estas pedras irregulares
Estalando por sob os saltos, na sua troncha tentativa
De serem puros retângulos. Pedras cortadas.
Quartos de uma pedreira. Membros avulsos
Da imobilidade sempiterna. Sempre terna.
 
Volto a morar numa rua de paralelepípedos
Que desemboca em várias outras do mesmo gênero,
E todas me são caras.
 
Caríssimos me são os sagüis acima. Canoros, com seus tufos
Brancos. São tais como pássaros de ouvir.
São tais como anjos de saber acima. Os anjos que sei
Saber. São como só bichos sabem ser ao olhar:
Surpresa viva, fascínio que busca raiz no azulado menino.
 
Volto a morar numa rua de paralelepípedos
E a saber sagüis entre minha cabeça e o céu.
 
Vejo coisas no caminho a que outros tantos não se ateriam.
O Drummond via a pedra solitária; ou a sempiternidade
Guardada nela. O Lêdo via o nada.
Em seu caminho branco, sua madrugada ao meio-dia,
Este via o vazio. Isso eu não vejo,
Embora recolha muitos signos que também o impressionavam.
Não vejo tão-pouco o pau, a pedra, a chapinha amassada,
O caco de vidro. A folha seca que piso, não vejo.
Estou excessivamente alerta. Como os animais de Deleuze,
Os silvestres, a que amava: tenho uma orelha
Apontada para cada direção, enquanto como e bebo.
Excessivamente desperto, perco coisas drummonianas,
Cotidianas e, mais tarde, vou buscá-las nele.
 
Tenho os olhos muito cheios de futuro.
Trago os ouvidos e o coração muito vazios de passado:
Muito excitados em relação ao porvir.
 
Gosto da sombra das folhas; das árvores cruzando
Dedos magérrimos por entre fios de força:
Jogando cama de gato.
 
Os carros passam ao meu lado. Esses troços
De lata, bêbados dum caldo fóssil de dinossauros
E a rugirem fumaça, perigo de morte. Morta pressa;
Tosca, pesada velocidade. Mil e duzentos quilos
Ou mais de pressa e desperdício de energia,
levando corpos magros a lugares-comuns.
 
Gosto das lojas de conveniência. Cappuccino gostoso,
Sanduíche bom: magro, para manter os corpos
Magros. Alface, tomate, peito de peru.
As moças de uniforme me dizem madrigais e lhes sorrio
Na loja de conveniência. Não são belas,
Mas são simpáticas ao meu olhar de esguelha,
Visando tudo em torno. Ora, eu e esse meu pacto
Mesquinho com a beleza física: dizem que é da idade
O excesso de escolha.
Acho de tudo um pouco na loja de conveniência.
Todo tipo de utilidades de momento (con-venientes):
Cigarrilhas, isqueiros de jogar fora; temperos, latas.
Uísque em miniatura, vodca. Dos vícios aos pães de dieta,
Passando pelo bicho de pelúcia para a namorada nova.
Nas tabacarias, acho inutilidades ainda mais cativantes,
Canivetes, bengalas, bússolas.
E eis as lojas de que mais gosto.
Também me foram caros alguns prostíbulos, vale dizer.
Lojas de tolerância.
 
A tolerância é escassa no dia. À noite, se veste de puta.
E, assim, é tolerada.
 
Os automóveis, esses troços, não sabem a menor tolerância.
Vêm dotados de buzinas de fazer correr o idoso, distraído.
E a buzina é um remédio: sem ela, o atropelamento seria
Inda mais devastador e indiscreto.
 
Gosto das pessoas distraídas que pisam paralelepípedos.
Levam jornais e bisnagas em sacos de papel.
Pisam a pedra sem extrair o estalido: sem pensar os passos.
 
Na outra rua, já há cimento. E o asfalto selvagem, preto, rubro
Da cor do petróleo pelo qual tanto se mata povos e mundos.
É uma rua brutal, barulhenta. Movediça.
Não obstante jorre suas conveniências esse rio de aço
Com cheiro de mijo onde brotam botecos de fungo.
Convém tê-la a meia-distância, enfim.
 
Perdoa, amigo leitor, trazê-lo neste passeio,
Por esta caminhada relativamente longa e, quiçá, enfadonha,
Para, ao cabo, nada dizer.
 
É que hoje é domingo. Um sol frio,
Mais branco que amarelo, tropeça do céu
Sem sombra de nuvens ou dúvidas, e reveste
As coisas hibernosas qual’ma película.
É uma dessas manhãs dominicais que não poderiam
Ser de sábado ou de terça: cada paralelepípedo
Pré-temporal sabe que — é domingo, e arqueja,
Pensativo, mas despreocupado.
Hoje é domingo nos-homens. E só me resta um gracejo:
Pé de cachimbo.
 
 
Igor Buys
(heterônimo Gregório Ivo)
03 de agosto de 2014
 
Igor Buys
Enviado por Igor Buys em 03/08/2014
Reeditado em 09/08/2014
Código do texto: T4907730
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2014. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.