O CÃO DE CHERNOBYL
A cidade de Pripryat está morta.
Nas ruas não ficaram nem saudade.
Pelas portas das casas só o vazio
que conduz a outros vazios
de várias vidas interrompidas
sem a chance de sequer olhar pra trás.
O dia amanhece no horizonte,
mas é o sarcófago que prevalece na paisagem.
Ali o sol não é o chamado
ali o sol não é admirado
Ali, ninguém esperou o novo dia.
O astro-rei é o sarcófago de concreto e chumbo
como seus mortos esquecidos em covas de plutônio.
Difícil lidar com essa ausência...
já li sobre muitas perdas.
Já experimentei muitas perdas inclusive,
mas essa ausência é mais gritante
porque tudo ficou intacto.
Já li sobre naufrágios inclusive
e tenho uma noção sobre o que enterramos no mar.
Mas aqui não há nada enterrado,
porque não há mais ninguém para lembrar
nem mesmo de iminência da morte.
Tudo é apenas vazio...
um vazio radiativo.
"Não leve nada da cidade" diz o guarda...
E enquanto passeamos pelo nada,
vejo que há árvores a crescer furando as calçadas
nas vagas do estacionamento do parque
onde há uma roda gigante
em que crianças brincavam.
Um cão vigia uma casa...
e o grito da ausência se cala por um instante.
Um cão comum ignora a radiação, o vazio e o nada
e se senta à porta como que a esperar.
Parece sério, determinado...
seus latidos ecoam no espaço e impoem sua existência.
Ali, no meio do mofo e da madeira podre
alguém ainda criou vínculos...
Olho pra aquela figura simples
e aquilo me dói tanto a alma
que a vontade que eu tenho
é de levar esse cão comigo.
Dar a ele um abrigo e algo de carinho.
Mas sei que não posso...
o cão está contaminado
e deverá morrer em breve.
mas o cão vigiava a casa...
quando o passeio terminou
percebi que a vida
é exatamente isso...
um cão a vigiar
as portas do nada
enquanto os visitantes passam.