REAL, REAL, REAL!

REAL, REAL, REAL!

E se fosses o rei, e se tu fosses

Aquele que, aclamado, nos governa,

A mentir para o povo frases doces...

Aquele que virtudes só externa

Digno d'excelentíssimos louvores

Sob a Sabedoria Sempiterna.

Se fosses o maior entre os maiores,

Aquele que d'heróis fora nascido

Herdeiro d'esperanças e temores!

Aquele que dos deuses o Escolhido

Para mostrar por nós predileção,

E em ti teu povo d'outros distinguido.

Se fosses tu o Chefe da Nação,

Com que decretos-leis ordenarias

Dos grandes e pequenos a visão?

Com que exércitos tu comandarias

O anseio contra inválidas cobiças,

Estendendo ao redor hegemonias?

Com que armas às massas insubmissas

Haverias-de impor tua vontade

Ao condenar dos maus as injustiças?

Com que realizações prosperidade

Todo o reino contigo gozaria

Reunido sob a tua autoridade?

Com que fausto, opulência e fidalguia

A corte dos notáveis mais brilhantes

Sempre em tua saúde brindaria?

Se fosses tão amado que os errantes,

Ousando questionar-te a liderança,

Quedassem reduzidos a inflamantes...

Se, ao merecer de todos a confiança,

Honrasses mais o cargo com conquistas,

E não, antes de morto, uma lembrança...

Se, cercado de célebres artistas,

D'uma época dourada pela glória

Deixasses boquiabertos teus cronistas!

Talvez tanta grandeza meritória

Fizesse que, embriagados de sucesso.

Elevassem teu nome para a História.

Talvez, atravessando sem tropeço

A estrada do poder, possam julgar-te

Seres um vencedor desde o começo.

E que ao sobrelevar teu estandarte,

Mesmo os senhores bélicos mais pálidos

Proclamem teu valor por toda a parte!

Mesmo estes, que das guerras vêm inválidos,

Deixando a juventude nas batalhas,

Se aprumem respeitosos mesmo esquálidos...

Levantam-se a aplaudir as tuas falhas

E urrem a tua alcunha como lema!

Mesmos os já revestidos de mortalhas

Façam te recordar o forte emblema,

Quando em face dos teus vãos inimigos

Lhes leve todo o horror em hora extrema.

Mesmo tantos vivendo sem abrigos

Acuados pela fome e pela peste

Evocassem-te o nome nos perigos.

Mesmo aqueles que alhures expuseste

E esmagaste sem ver em tua alteza

Somente a te mostrares inconteste.

Mesmo os demais reis da redondeza

Respeitosos, ouvissem-te o clamor,

Qual fosses de teu reino fortaleza.

Todos, sem exceção, em teu favor

Te fizessem maior em cada grei

E por eles eleito imperador!

Ou se em verdade fosses pobre rei

D'um enclave onde, déspota absoluto,

Tão-só tua vontade fosse lei!

Vassalo de vassalos, diminuto

Castelão cujo feudo teus senhores

T'esquecessem até o contributo...

Se tu fosses dos reis um dos menores...

Que sequer como rei reconhecido

Fosses por quem exploras sem pudores.

Se não mais que um tirano esclarecido,

Que entre cegos tem olhos de ver

Apenas p'ra tomar do desvalido...

Se não mais que um escravo do poder

Que aos seus mais importuna do que manda

E nem respeito faz por merecer...

Se não mais que outra alteza veneranda

Empenhada em furtar do reino a si

Qual fosse um ladrãozinho de quitanda...

Se não mais do que servos para ti

Fosse este povo doente e gemebundo

Que em vilas de teu reino conheci...

Se, afinal, o pior rei de todo o mundo

Fosses tu ao ignorar os teus deveres,

E ao legar um país árido e infecundo...

Se, bem ou mal, com máximos poderes

Quem súbito um tirano se descobre

Sempre soube guardar-se mais haveres...

Grande ou pequeno rei; mais nobre ou pobre,

Com certeza em defesa me dirias

Que pouco fazes porque pouco o cobre...

Mas se fosses tal rei, nem me darias

A chance de ditar contestações

Ou reclamar de ti patifarias...

Decerto m'enviarias aos porões

Depois que me cortando a longa língua

E declarar-me um vil entre os vilões.

Ali, com outros mais postos à míngua,

Torturas de deixar em carne viva:

Vermelhidão, inchaço, ardor e íngua...

Mas se fosses tal rei, sequer a oitiva

De meus males por conta de teus bens

Permitirias senão em negativa.

Um rei sem tempo para tais poréns,

Tampouco impressionado com coitados

Às voltas com biscates e vinténs...

Um rei sem mente para os olvidados

Tampouco para os mais despossuídos

Que vivem pelo reino despojados...

Mas se fosses tal rei, entre desguidos,

Tu não te negarias privilégios,

Ainda quando às custas de oprimidos.

Um rei indiferente a modos régios,

Grasnando sem decoro e sem decência

Contra cortes, senados e colégios...

Um rei indiferente à complacência,

Entregue a um hedonismo pleno e cru,

A buscar-se senão concupiscência...

E se fosses o rei; se fosses tu

A palavra de vida e até de morte,

Onde todo o desejo esteja nu.

E se fosses aquele que é mais forte;

O que manda e desmanda sobre todos

Apenas por que o gozo lhe conforte.

Talvez serias quem de tantos modos

Seduziu, aliciou, comprou, vendeu...

Com tão falsas promessas, com engodos...

Talvez serias tu, ou talvez eu,

Quem com más intenções desfrutaria

De quantos o dinheiro corrompeu.

Talvez serias quem da fantasia

Houvesse-de gozar a qualquer custo,

Lucrando co'a extrema carestia.

E se fosses aquele que, sem susto,

Fruísse tanto luxos que luxúrias,

Ainda que passando por injusto.

Talvez serias quem d'entre penúrias

Arrancasse mais gozos do que penas

Indiferente a tão iguais lamúrias...

Talvez serias quem a horas amenas

Inopinado entrasse pela alcova

D'uma virgem vendida a ti apenas...

Talvez serias quem em verso e trova

Pudesse ter nos braços d'esta bela

Alguma experiência plena e nova

Talvez serias tu, ou talvez ela,

Quem sendo corrompida, corrompesse:

Natureza que apenas se revela...

Se fosses o ceifeiro; se ela, a messe,

Talvez não fosses mal, apenas rude,

Como uma flor no campo alguém colhesse.

Em sendo tu o rei, ninguém se ilude:

Em códices, papiros, pergaminhos...

Hás o nome da bela e a juventude!

Talvez listas de nomes e carinhos,

Em sendo tu o rei, maior riqueza

Para a inveja dos reis circunvizinhos...

Talvez os privilégios da realeza,

Em sendo tu o rei, sejam conquistas

A um esteta do sexo e da beleza.

Em sendo tu o rei, tuas artistas

São amantes desnudas, concubinas,

Tão afáveis ao toque quanto às vistas...

Talvez as liberdades femininas

Em teu reino, ou senão em tua alcova,

Proclamasses em férias libertinas.

Talvez tua grandeza posta à prova

Reafirmasses nas lides amatórias

Que em cada nova amante se renova.

Em sendo tu o rei, tuas vitórias

Seriam antes dúzias de mulheres

A cantar dos amores teus as glórias.

Mas se fosses o rei, tantos misteres

Minariam as finanças sem remédio

Apenas por fazeres que quiseres.

Talvez porque te fosse imenso o tédio

E a graça de ser rei se te perdesse,

Sentindo já da morte o negro assédio...

Talvez porque de tudo que acontece

Metade seja sonho... E a outra metade

Sonho dentro do sonho se parece...

Porque se fosses rei, em realidade,

Ainda que tu fosses Salomão,

Não serias mais que outra iniquidade.

Porque é ser rei extrema condição

D'um poder pelo reino e para si

Que só faz de quem reina uma ilusão.

Porque se se diverte aqui e ali

Os que realmente reinam, por discretos,

São muitos que nas sombras conheci...

Porque decorativos feito objetos

Os reis dão rosto e nome ao que somente

São mecanismos de ordem obsoletos.

E se fosses o rei, provavelmente,

Te irias corromper, porque o Poder

Nos corrompe absoluta e plenamente.

Betim - 31 12 2019