EXORCISMO
O que os séculos fermentaram
de deuses, sanhas e atrocidades
quero drenar-me em fel por ora:
no assoalho longo da casa-grande
num amargo quadro de antiga posse
na canastra do aguardo em esquecimento
na cama fria da furtiva mucama
e na costura aflita da feminina sinhá!
O que os séculos destilaram
das canas, das frutas e vaidades
quero purgar-me do luso sangue:
no barro exangue da senzala
na gargalheira atada ao sangue-tempo
na baeta vazia de ocultos valores
no cesto das ervas agridoces
e na escuridão da noite feroz!
O que os séculos acumularam
dos eitos, dos ferros e diamantes
apago do meu asco interior:
o desmando atávico da chibata
a impostura da sagrada oração
a sordidez de filhos bastardos
a crueza da marca na pele negra
e o alvitre do roubo na contenda.
Exorcista, eu esconjuro
delego a Deus a senil frieza
renego o nosso luso império
escarro o fel diário do açoite
amarro a escuridão ao cepo
costuro meus olhos às brasas
aferroo a mentira ao tronco
extraio o sal de meu chão
alucino a razão no meu veneno
arremato a fé no terreiro.
Exorcista, me depuro
liberto o que de mais negro tenho
num canto mais frenético que sonho
no alarde mais intenso em que danço!