[ não te demores ]
não te demores
I.
estragamos o uso de algumas palavras
que certamente existiam antes da nossa
fala. a palavra amante, por exemplo,
deixou de ser quem ama, para ser quem
trai; deixou de ser a fala de quem ama
— que inda ama, para ser a fala de quem
trai — quem inda trai. por isso, se te / me
chamo amante em minha mente, penso
seriamente, antes de dizer : porque
sabemos dos estragos que algumas
palavras, através da fala, causam, deixam.
será o gesto do amor, suficiente, para que
se ignore a palavra amante que se busca
falar [ que busco falar a ti ]? será o amor
— esta necessidade
buscada
no outro
quando não
nos sabemos —
um vestígio
do paraíso?
II.
dias ensolarados,
Monte Parnaso,
planilhas
protegidas com os nomes
de Hilda
e de Sophia;
a poesia, minha querida,
a poesia.
a solidão
dos meus amigos
e amigas
ante
a pandemia
— por isso chorei
inda pouco;
por isso
hei de chorar
se pensar.
a poesia, minha querida,
a poesia.
— inda que
o abraço
seja
distante,
y o sol,
por vezes,
pense
duas vezes,
antes
que se levante.
III.
percebes, minha querida,
que inda
que de ti eu fale,
não posso evitar
de falar
dos outros?
fará,
este meu
comportamento,
com que eu
te ame
menos?
IV.
pois a princípio,
pensei em escrever
um antissoneto
sobre uma análise
da palavra
amante
— como cousa que ama
y que se transforma
na cousa amada,
como dissera
Camões?
teria vindo, este verso,
antes de uma ferida que dói,
y que não
se sente?
V.
— e no entanto,
depois de tanto,
continuo este poema;
transgredindo os
quatorze versos,
a rigidez
dos quartetos,
a métrica
dos tercetos.
— e no entanto,
depois de tanto,
sigo amando[-te]
y escrevendo [-te]
y a andar
pela casa;
porque é preciso
dizer tudo isso
[ que amo, que odeio,
que penso,
que me canso,
que apago poemas
que não mais me causam
ou qualquer outra coisa
ou qualquer outra coisa
ou
qualquer
outra
coisa
— menos o nada,
jamais o nada,
nunca o nada ]
antes que
o silêncio
antes que
o silêncio
antes que
o silêncio
nos caia.