Vozes no espelho

Encaro no espelho a minha face

A alma mostra o olhar perdido,

É o que vejo ali nitidamente refletido,

E contra ela não há nenhum disfarce.

Sarcástico, gargalha de mim o reflexo

E sinto vontade de parti-lo em pedaços

Fazê-lo em mil milhares de estilhaços

Mas o que ele mostra não é sem nexo.

De repente, do espelho a luz desaparece

Atônito, recuo, tropeço e vou ao chão

Assustado, não tenho a mínima reação

Diante do objeto que do nada enegrece.

Ouço, porém, a voz que me diz, cavernosa:

– A cobrar-te a paga é esta tua consciência

Exímia cobradora, sem qualquer clemência

Vem exigir-te a quitação da dívida monstruosa.

– Mas ela quer receber em mínimas parcelas

Não a fim de deliciar-se com o teu sofrer

E sim para que possas lentamente aprender

As lições necessárias com cada uma delas.

Em lágrimas convulsivas eu desabei

Pois não tinha por onde fugir da verdade

Tivera eu em mãos a chance da felicidade

E imprudente, auto confiante, fora a joguei.

Errei, do erro muitas vezes consciente

Reconheço, não faz parte de mim a hipocrisia,

As vezes que fiz brotar lágrimas de agonia

Em olhos que eram dedicação e amor somente.

Hoje recebo o troco talvez justo da vida

E nem raiva me é permitido sentir

A voz se fez para que eu pudesse ouvir:

– É que o amor ainda está a rondar esta ferida

Que abriste descuidado em teu peito

Pois é ele que vai fechá-la no momento

Em que a dor não fizer aprisionamento

E outra vez o coração será amoroso leito.

O curioso é que a voz soou desta vez

Diferente, tão suave e acolhedora

Não era o tom que no início fora,

A cavernosidade vocal se desfez.

Voltei a face ao espelho e então pude notar

Que apesar de ainda marcada pela dor

Há luz no mais escondido interior

Basta buscá-la após cada vez que chorar.

Cícero – 17-05-2020

Cícero Carlos Lopes
Enviado por Cícero Carlos Lopes em 17/05/2020
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