[ sem título #29 ]

I.

canta um galo

enquanto leio

Mell Renault

no Aniversário

de minha Mãe.

II.

canta um galo,

enquanto penso que

galos

cantam somente

durante a manhã,

e não

durante a tarde,

passado

as três horas.

III.

não sei a que vizinho,

esse galo, pertence.

no entanto, quando o ouço,

penso:

"Galo Galo".

[ que é o título

de um poema

de Ferreira Gullar

— que sequer

me lembro;

salvo

o trecho:

"— que faço entre coisas?

— de que me defendo?".

IV.

e fica nisso:

nessa estranha

dança

onde o galo canta,

e eu,

que ouço,

penso:

"Galo Galo".

V.

mas um Galo

não pode cantar para sempre;

inda que cada aurora traga consigo

um pouco

de infinito.

[ aquele infinito

do universo, que seria

assustadoramente escuro,

não fosse as estrelas.

mas um Galo,

também,

não cantará para sempre,

porque há de ser alimento

— após ter sido alimentado.

VI.

um Galo,

é,

quiçá,

uma fruta

que uma família

brasileira cultiva,

para que possam

sobreviver

à fome

vindoura.

VII

mas saberá o Galo,

da sua morte,

para que

os outros

venham

a continuar

vivos?

mas saberá o Galo,

da fome

plurissignificativa

deste país,

e por isso

se entrega

num gesto

heroico?

VIII.

e quando esse Galo

não mais cantar,

cogitarei o desfecho de sua vida.

nas panelas, nos pratos,

nas bocas, nos estômagos,

nas digestões y nas memórias

— caso o tenham nomeado.

caso o tenham

humanizado.

trocado suas penas por pelos.

trocado seu bico por boca.

trocado sua crista por cabelos.

trocado suas asas por mãos.

o humanizado

de tal forma

que choram,

que choraram e/ou que chorarão

a sua falta

como a perda

de um ente

querido.