EXORCISMO

O que os séculos fermentaram

de deuses, sanhas e atrocidades

quero drenar-me em fel por ora:

no assoalho longo da casa-grande

num amargo quadro de antiga posse

na canastra do aguardo em esquecimento

na cama fria da furtiva mucama

e na costura aflita da feminina sinhá!

O que os séculos destilaram

das canas, das frutas e vaidades

quero purgar-me do luso sangue:

no barro exangue da senzala

na gargalheira atada ao sangue-tempo

na baeta vazia de ocultos valores

no cesto das ervas agridoces

e na escuridão da noite feroz!

O que os séculos acumularam

dos eitos, dos ferros e diamantes

apago do meu asco interior:

o desmando atávico da chibata

a impostura da sagrada oração

a sordidez de filhos bastardos

a crueza da marca na pele negra

e o alvitre do roubo na contenda.

Exorcista, eu esconjuro

delego a Deus a senil frieza

renego o nosso luso império

escarro o fel diário do açoite

amarro a escuridão ao cepo

costuro meus olhos às brasas

aferroo a mentira ao tronco

extraio o sal de meu chão

alucino a razão no meu veneno

arremato a fé no terreiro.

Exorcista, me depuro

liberto o que de mais negro tenho

num canto mais frenético que sonho

no alarde mais intenso em que danço!

Poema classificado em 5º lugar no “Concurso Internacional de Poesias – Prêmio Cecília Meireles”, de Feira de Santana/BA, em janeiro de 2020.