Poética - Museu cancerígeno

"Há quem diga que certos espaços quando esbarram em nosso olhar, ganham o formato da nossa alma, e então, manifestam-se como personagens na narrativa emotiva da vida."

A casa que formou-me nos primórdios do meu eu, jazia puída no calor fétido das minhas memórias.

A arquitetura de seu ventre que outrora guardou vida; agora absorve o abandono por entre as infiltrações do tempo.

Tuas janelas sondam os olhos vazios do passado e as tuas rachaduras aspiram a porosidade das almas que aqui já pisaram.

Entrar em seu corpo é como de verme travestir-me e de entranhas nostálgicas nutrir-me (...)

Ora, não sabes que algumas moradias absorvem os momentos nelas vividos e que mesmo após a morte dos mesmos, continuam a expor-lhes os vestígios numa estranha organicidade?

"Ah, pisar sobre o piso etéreo desse espaço abandonado é como entrar no submundo escuro do meu passado.

Os ratos nele procriam e as paredes níveas descascam-me as memórias na tintura cega de um lugar que não mais me acolhe."

O corpo de concreto a putrescer

é a prova de que os melhores momentos nascem para morrer.

Engula-me como uma falsa canceriana dissolvida em nostalgias, ó vã estrutura dos meus dias.

Gostaria de mofar em suas artérias e decompor-me no esqueleto de suas mobílias.

Então jogue o cordão umbilical para que eu possa escalar de volta às memórias que me formaram dentro de ti.

Ora, o que seria a carcaça do que fomos e de quem amamos, se não um lugar que ilusoriamente ansiamos retornar para um vão recomeço gestar?

- Letícia Sales

Instagram literário: @hecate533

Letícia Sales
Enviado por Letícia Sales em 07/11/2021
Reeditado em 03/03/2022
Código do texto: T7380591
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