Cena do dilúvio

O rochedo está desmoronando, caindo ruidosamente sobre as águas abaixo, agitando-as e arrebentando suas margens. Eu, aqui embaixo e ao longe, de uma distância segura, testemunho incrédulo e aterrorizado à queda do monumento.

Meu outro eu, mais antigo e mais forte, maior em todos os sentidos, meu farol e meu trauma, invencível em força, insuperável e eterno, despencando com o peso de mil vidas, fragilizado se amassa sob o peso de uma folha de papel.

Eu aqui em cima, colocado um pouco além do turbilhão e do maremoto, firme na sólida rocha que o rochedo assentou, em dor e desespero, pois meus olhos contemplam o fim. A eternidade futura se abre fechando a eternidade passada, pois o rochedo veio antes de mim.

Aqui do alto, onde há plenitude e paz, amargamente desfruto dos frutos enquanto o terror faz sofrer minhas têmporas e escapa-me pelos meus dedos magros os dedos grossos daquele que me gerou, me deixando no ombros a obrigação de viver, enquanto ele encara sozinho o abismo, até qua a última onda traiçoeira engole seu último fio de cabelo, ficando apenas a sombra do meu inexorável rochedo.