O Último Poema Imortal

I

É preciso que eu rasgue e queime todas as malditas vestimentas

Com que me uniformizaram e me etiquetaram durante milênios;

Preciso resgatar do poço de meu ser toda a minha pluralidade,

E ser eu mesmo, mudando-me a mim através de minha liberdade.

II

Um pequeno vale de cerejeiras em flor

Refulge, como um Sol, perto de minha cabana.

E os longos braços do Carvalho Sagrado

Abraçam-me e me dizem: “És meu filho amado.”

Ajoelho-me, em reverência, a cada árvore desta floresta

E uma comunhão de sangue, matéria e espírito flui em nós.

Deito-me na relva e ouço o pulsar do silêncio e das flores:

“Permaneça neste viver absoluto”, cantam-me os rouxinóis.

III

Colher a fragrância indissolúvel dos instantes e das flores,

E chorar copiosamente todos os perdidos amigos e amores.

E após tal pranto, florir de meus lábios novos salmos e cantos,

Germinando vinhos de alegria nas taças dos pecadores e santos,

[Visto que o pecado e a santidade são só antíteses de decanto.

Cantar um hino de graças e bençãos perto do riacho,

Salmodiando e dançando despido entre seixos e rochedos,

Bradando “Estou livre de toda a humanidade e seus medos”,

E, mergulhado no riacho da solitude, descobrir os segredos

[da Vida e emergir renovado lá perto do cantante arvoredo.

IV

Há toda uma orquestra sinfônica na natureza:

Vozes vibram das volúveis várzeas e dos violinos,

E correm e brincam ante toda essa gritante beleza,

A qual transforma um orvalho num rio cristalino.

E lá longe, no cume da Solitária Montanha,

Ouvi o canto do raio que voou do céu à terra;

Resplandeceu em tudo esta essência tamanha

Que há na vida e que a morte jamais encerra.

Porém, um imenso manto escuro trovejou e despencou do céu,

E todas as árvores, lagos e aves afundaram num silêncio soturno.

Ergui meu cajado e bani os brotos de Caim para além dos monturos;

As estrelas rugiram de júbilo e chorou feliz ao luar o corvo noturno.

V

O frio desceu da noite e então acendi uma fogueira.

Nas selvas humanas de cimento sempre fui infeliz;

Para ser aceito eu tinha de ser alguém que nunca quis,

E diziam querer a verdade, mas era outra busca leviana,

[Porque a verdade é que eles preferiam ficções insanas.

Hoje, deitado na areia, fito admirado a vastidão do universo.

Não me sinto mais triste e abandonado com o silêncio absurdo!

Aprendi a mergulhar bem fundo nas cataratas de minha alma,

E lá nas profundezas encontro pérolas entre correntezas e calma.

[Afago o rosto da lua no lago. Existo e vivo as essências de tudo!

VI

Não reina aqui o choro nem o pesar de pessoas tristes e famintas,

Nem se buscam mais entre ruínas de templos vozes de profetas.

Fome, miséria, aflição, aquela velha humanidade foi enfim extinta,

Agora só há as eternas árias das florestas e dos espíritos dos poetas.

Gilliard Alves
Enviado por Gilliard Alves em 01/02/2023
Reeditado em 02/02/2023
Código do texto: T7709057
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