Poética - Epoché
"Num ateísmo de mim, descri de minha própria existência, mas deixar de acreditar-me não cessou o meu existir, apenas me fez vagar no escuro de minhas emoções sem ao menos senti-las desfigurar-me e alterar-me por dentro."
Ah, quando o universo não tinha forma, o conceito de tudo jazia petrificado em meus olhos, e o reflexo da existência perecia em meus sonhos.
A vida era apenas uma possibilidade entranhada no breu das minhas artérias.
E se eu existia, já não sabia, pois as coisas não se apresentavam a mim.
O vazio de um Deus habitava toda a circunferência da minha psique e deixava estéril a minha criatividade.
Ah, no mundo sem espelhos, a única forma de refletir a si mesmo era através do olhar alheio.
Doravante, ao passar pelo prisma de olhos que não eram meus, o estrabismo da existência extraviava-me de mim.
Assim era antes de eu existir.
Para então criar um universo no vazio dos meus próprios olhos, tive que suspender todas as distorções e preconceitos que outrora absorvi em miopia.
Tive que despetrificar-me dos olhos alheios para reanimar-me em meus próprios moldes e deixar-me nascer em minha própria visão.
Um fluir sem substância irrompia no fundo da superfície facial e minha evocação erguia presenças antes não vistas.
- Nervos, músculos, sangue, sinapses e sensações regiam a matéria prima do meu universo de vísceras tão suscetível ao bombardeio das emoções -
Numa desfibrilação, moldei-me a minha própria imagem, dando vazão as pulsões mais íntimas, e não sendo nada, tornei-me alguém por entre as subtilezas terríveis das abstrações.
- Letícia Sales
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