EXERCÍCIO DE FÉ (MEDITATIO)

Em casa sem nada a fazer

e lá fora os pardais no quintal

apressados em bicar o chão

bebendo no fio d'água

que como vidro brilha

arrastando-se para a rua

lentamente... lentamente...

carregando um pouco do pó

acumulado na ventania.

 

Também lá fora

muitas formigas correm

param, carregam e correm...

correm, carregam e param...

sempre o mesmo caminho

soldadinhos enfileirados

incansáveis ao sol

adivinhando alguma chuva.

 

Na sombra da varanda

o sol resvala mansamente

nos ramos verdes da samambaia

que silenciosamente espera

um pouco d'água

e um mínimo de atenção.

 

Os ruídos dos carros que vêm da rua

o mormaço e meus pensamentos

são pássaros de muito barulho

e muito pouco canto

muito pouco canto...

 

É preciso lembrar

sempre lembrar...

sempre lembrar...

que as casas são abrigos,

que os veículos só nos levam

e que as ruas só são caminhos.

 

É preciso ver

sempre é preciso ver

que casas se arruínam

que os carros sempre se quebram

e que o que resta somos nós

sempre nós...

só nós nos caminhos.

 

Ter um tempo para voltar

momentos para recomeços

e saber o ponto de partida

ter o ponto, a força e a fé...

ter a fé, a força e o ponto...

sentir que podemos renascer a cada dia

todo dia... todo dia...

todo novo dia uma nova possibilidade

enquanto vida houver...

enquanto vida houver...

 

Zildo Gallo

Americana, 29 de setembro de 1981.

Revisado em: Araraquara, SP, 19 de maio de 2017.