Só seguimos

Acordo antes do despertador tocar,

ainda está escuro lá fora, mas há carros,

a avenida já está se movimentando,

as vidas que entram e saem das ruas,

os destinos que se esbarram e desaparecem,

as notas de uma melodia que nunca é tocada,

o silêncio que vai se esvaindo no barulho nascente,

um dia de vida, um dia de morte, um dia de espera,

nas contas do destino, nas arestas do papel,

levanto para coar um café e animar os olhos,

a casa parece grande demais na minha solidão,

a chama do fogão é uma pequena fogueira brilhante,

onde não posso queimar pensamentos e sentimentos,

o filtro deixa passar a água que se transforma com o pó,

mágica que aquece corações vazios e esperanças mortas,

na caneca que não mostra o futuro, só o triste presente,

do sofá olho o horizonte da janela em luzes piscantes,

as pessoas em movimento, rodopiando em seus afazeres,

mais um dia no relógio da existência de sorrisos e lágrimas,

poderia ser mais fácil percorrer o grande lago congelado,

mas sempre é tão difícil patinar em gelo fino sem escorregar,

sem temer que se abra um buraco e nos trague ao congelamento,

pois nunca sabemos para onde estamos indo, só seguimos cegos,

fingimos um plano, um roteiro, um guia, um norte, uma certeza,

estamos somente apostando que chegaremos vivos ao fim do dia,

sortudos ou azarões só entramos na pista como cavalos de corrida,

para cruzar a linha de chegada e ganhar alguns prêmios pelo sucesso,

o café já acabou e minha introspecção precisa se transformar em ações,

tarefas, prazos, burocracias, tudo o que não me apraz nesse momento,

mas ligo o piloto automático para me formatar no script dos humanos,

dramatizar que não há problemas insolúveis e nem dores incuráveis,

dizemos adeus para o que não nos pertence e nos forçamos a superar,

somos atores oscarizados sem tapetes vermelhos em noite de gala,

talvez Sócrates ou Nietzsche pudessem explicar nossa resiliência,

quem sabe Schopenhauer dançasse uma composição Tchaikovski,

encontro perfeito de melancolias e depressões em cadência lírica,

entretanto, estamos mais para os filmes P&B de Charles Chaplin,

fazendo graças tortas com nossas desilusões em duplas piruetas,

encobrindo o sofrimento com piadas passageiras para desopilar,

rir como o melhor remédio para uma contínua corrosão da alma,

sacudo a cabeça e sei que tenho muito a fazer, mas gostaria de fugir,

sair pela porta, ir ao aeroporto, comprar uma passagem sem destino,

voar para algum lugar desconhecido, sem saber o que lá me espera,

me lançar ao desconhecido, ouvir idiomas estranhos, ver culturas novas,

me perder no mundo para atenuar talvez a própria perda que há em mim...