MEU GRITO - II

Não consegui dormir. Isso não é novidade!

Alguém me chama e me pede acesso. É o papel em branco; ele costuma fazer terapia sob a dança de meu lápis compulsivo. Então eu me debruço sobre a mesa, refém desse transe devorador que me consome, que me esgota, que me verte em transpirações abstratas e concretas e que me castiga com a multiplicidade de emoções que poderiam ser compartilhadas e repartidas entre milhares, mas que o destino achou por bem residirem nesses frasco minúsculo e desprezível que sou eu.

Alguém escreve, alguém digita, alguém dita, alguém desenha, mas eu vomito. Isso mesmo, minhas letras são vômitos que esparramam lágrimas e sorrisos desertores e desatados no frágil papel, outrora branco, agora repleto de aceleradas sentenças, que fazem pleno sentido a essa loucura que me mantém lúcido.

Me compreender é um exercício que levaria a psicologia a rever os seus conceitos, porque meu humanismo e minha humanidade são antropologicamente contraditórios e se discordam até no ato pacifista de seu eventual cessar-fogo. O fato é que sem guerra eu não tenho paz, não conheço chuva sem deserto, nunca vi um sol brilhar quando não fosse noite, jamais consegui escutar o som propagado, tal como sempre dialogo com o silêncio, e tudo isso morre na lógica que é somente minha, de que a minha solidão é tão populosa, que às vezes me sufoca.

Então eu corro para os meus vícios, na vã tentativa de achar recheio às minhas lacunas interiores. E quais são meus vícios?

Eu tenho vícios empíricos e metafísicos, abstratos e concretos, ilusórios e tangíveis, críveis e míticos.

Eu sou viciado nas flores de um solo árido, nas paredes erigidas pela assolação, nas colunas dos escombros, nas vírgulas de uma folha em branco, na permissão de um não, na destruição a que se propõe todo renascer, na queda de um vôo progressivo, no fruto que se rebelou da semente, nas asas de um anjo deficiente, na festa do choro, nas grades da liberdade, no realismo de meus sonhos, na franqueza de toda mentira, no modismo libertário, no ópio plausível, no ilícito que fere interesses e nos versos agressivos que sangram nas piscinas da burguesia. E digo mais, sem meus vícios eu não vivo. Mas nem eles, até hoje, conseguiram aliviar a minha aflição!

Mas eu entendo porque até meus vicios me abandonam na hora de minhas agruras. É que ninguém suporta minha glutonaria ideológica: eu quero as reservas guardadas pelo tudo, quero me saciar, me abastecer, compensar a perda energética gerada por meus vômitos poéticos na pouca santidade de minhas transgressões.

Talvez seja essa a forma que achei de gritar.

Considerando que a minha voz é inaudível, quem sabe algum colo (feminino, é claro) se proponha a fazer dormir o meu soluço desamparado!!

Reinaldo Ribeiro
Enviado por Reinaldo Ribeiro em 02/08/2008
Reeditado em 04/08/2008
Código do texto: T1109325
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