A Casa e o Tempo

Para Mabel Lelis

não era, certamente, uma casa muito velha

as paredes estavam ainda brancas;

notava-se a firmeza dos portões de ferro

e a alegria dos pássaros

esvoaçando nas janelas

esperando migalhas

espreitando sorrisos

os jardins eram alegres, floridos;

as plantas brilhavam de verde

molhadas pelo sol e pela chuva.

as janelas e portas coloniais

denunciavam o estilo provinciano

mas não cediam às pressões do mundo moderno

cosmopolita

mantinha erguidos os muros

impenetráveis e resistentes.

não era, entretanto, uma casa aberta;

suas janelas e portas se fechavam

como uma couraça;

as trancas de ferro,

antigas e carcomidas pelo tempo,

ainda seguravam ardentemente as aberturas

para a poeira das ruas.

esse medo invadia as paredes

e a pintura descascava tristemente

e o mofo se instalava implacável como a morte.

mas o sol inclemente invadia pelas brechas

daquela fortaleza vigorosa

e o passado resistia

porque ele é duro como o cimento.

haveria vida em casa tão misteriosa?

tão fechada em si mesma?

nem todos conseguiam desvendar as cortinas

mas é bem verdade que o progresso da cidade

não tem olhos para o passado;

fornece apenas as picaretas da demolição

e assim uma casa antiga é como um traste

na beira do caminho.

se aquela casa se resguardava do mundo,

temerosa talvez,

não conseguia esconder sua vida interior.

os sons proliferavam

as conversas mansas de fim de tarde

repercutiam no início da noite;

os vasos de flores nas janelas . . .

o cheiro de boa comida

que invadia os arredores . . .

era como se a casa se bastasse a si mesma.

inquietações haviam de certo,

pois as janelas e portas estremeciam

algumas vezes como se quisessem explodir;

seus habitantes recebiam, portanto,

alguma luz do sol,

mas era uma explosão camuflada, abafada,

um travesseiro no rosto,

até mesmo o passado, na sua dureza,

fraquejava.

as sombras refletiam nas janelas

tremiam sob a luz das lamparinas

vagavam noite a dentro

em busca de um ponto perdido no universo

e, durante o dia,

o sol resguardava o seu direito

de reproduzir a vida,

mas durante as tempestades

os alicerces estremeciam

abalados pelo desgaste dos anos e séculos.

é evidente que a casa misteriosa

possui muitos segredos

e nada se saberá a não ser penetrando nela,

mas e o futuro de uma casa antiga?

a quem serão remetidos os escombros?

servirão apenas de piso

para as novas estradas do progresso?

ou então ingressará na trajetória do descaso?

certamente as grades ruirão futuro a dentro

permacerá apenas o gosto amargo

de viver armado.

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1) Publicado no livro "Incêndio Menor" - Ed. do Autor - Rio de Janeiro - 1981 - pp. 18-19.

2) Publicado em "Poesias ao Sabor do Vento" - http://www.bchicomendes.com/dcarrara/casatemp.htm