Prisma

As faces que me mostras são tantas, que nelas não sei mais qual mirar, em qual delas eu devo crer - que migalhas de esperança inda me atrevo a reter.

Um rato enjaulado numa armadilha sem portas, com um leão faminto em cada lado postado: esta é a sensação que a minha alma, angustiada, suporta.

Minha sombra, desnorteada, deambula por horas mortas; sôfrega, a procura do Nada, sabedora que nada poderá encontrar: apenas farrapos de encruzilhadas a ligar ruas tortas.

Há um cometa alucinado de amor na vastidão estelar, um bastião saqueado em antigas refregas, repleto de falsas entregas, de olhos vendados para o óbvio não ver.

Que prisma estranho tenho em minhas mãos: através dele sondo turvos desvãos, encontro neles o esconderijo de teus gestos, as palavras que não te disse, o fel que terei de engolir.

A raiva surda, enclausurada, troveja. O escárnio espreita na esquina. Prometeu, teu fígado exposto é repasto de hienas. Não é lícito sonhar, camarada. Acordar é preciso.

Não clamarei aos deuses um mitigar desta dor; opto por conduzi-la na aljava de minhas lembranças, flechas cravadas na carne, flores despetaladas alvejadas por impiedosa chuva de granizo.

Estou realmente cansado deste festival de obviedades, de grandiloqüências espúrias, de emparedar necessárias verdades; cansei também de minha retórica vazia, de não casar o pensar com o agir.

Anteponho um iceberg de indiferença a tua loucura jorrante, prenhe de atos repetitivos: basta-me o meu próprio insulamento, este meu gosto por alçar vôos a distância intangíveis.

Hades divorciado de Perséfone: a perda da inocência é insuportável prá mim. Na travessia do Saara a mentira não é boa companhia – torna-se um fardo demasiado pesado prá se carregar.

Qual de tuas mil faces ostentas agora? Que outras mentiras estás a brandir? As faces são tuas, as mentiras também; são mil lindas faces, múltiplas faces-mentiras prá nos premiar.

A tua face retida em meu prisma desfez-se em mil pedaços no ar, pedaços repletos de Nada, reflexos desse improvável amor que me dás, matéria-prima de meus sonhos impossíveis.

Estão abrigadas no fundo das águas escuras deste teu mar de mentiras, as muitas juras de amor que te fiz e o libelo acusatório de te fazer minha cúmplice de um crime de lesa-pátria - este crime imperdoável de querer ser feliz.

Já não há mais tempo prá nada. Os clarins do entardecer anunciam, impacientes, a iminente morte do Sol; o canto do cisne é pano de fundo prá mágoa - um bandolim dedilhado é guardião de meu sono.

Não quero mais lembrar nossos beijos, nem me algemar em tuas verdades aparentes. Ainda ontem tu dormitavas em meus braços; hoje, deixaste em minha porta, enfeitado com um laço dourado, o presente do amor que vivíamos - este amor infeliz cão sem dono.

No inventário deste amor mentiroso constarão teus inúteis protestos, o teu maravilhoso leque de explicações, minhas recidivas constantes e meu olhar complacente – mas, como herança maior, deixo nele, um invisível círculo de giz.

Ao invés de extirpar uma dor de dentro de meu coração eu prefiro tomar o caminho de identificá-la e conviver harmoniosamente com ela. Evito que, com a extirpação da minha dor, fique em seu lugar um vazio que jamais será preenchido.

Cidade dos sonhos, manhã de Sexta-Feira, sétimo dia do mês de Maio de 2010

João Bosco

Aprendiz de Poeta
Enviado por Aprendiz de Poeta em 07/05/2010
Reeditado em 26/09/2010
Código do texto: T2242165
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