Chuva ácida no deserto
Chuva ácida no deserto
I
Vácuo preenchido
Estou levitando nesta terra, onde quero ter minha morada dentro de ti
Preciso que isso perdure e floresça sobre a carniça podre
Preciso seguir pelos meandros dos teus canais
Mais belos que aqueles de Veneza
Quero olvidar do meu legado de chumbo
Embora a tua falta às vezes possua gênese dentro de mim
E, às vezes, igualmente, provenha de fontes sobrenaturais
Não há como subsistir apenas inalando esse medo lazarento
Bebendo de mares salgados e admirando desertos sem dunas...
E livros sem contos
E um firmamento sem nuvens
E cortejos sem velas
E igrejas sem vitrais
E rosas sem perfume
E poemas sem metáforas
E quintilhões de sóis sem luas vistos de telescópios de brinquedo do deserto
II
Tu podes perceber o quanto a chuva faz falta depois de um ano
Tu podes perceber que o que eu sinto por ti não tem nome porque é perfeito demais para ser nomeado, compreendido, evocado ou emitido pela voz humana
A revolução que causaste nas minhas ideias foi demasiadamente profunda
E as reações químicas, pegadas e queimas de combustível que me levaram até a tua rota pareceram infinitas
Arrasta-me atrás do teu equino
Mas não me deixes ver-te com outro ser deste planeta
Mesmo que ele seja melhor, mais evoluído do que eu
Melhor nem descobrir...
Seria como um ano sem chuva
Um ano sem colheita
Um ano sem o nascer do sol
Assim seria meu dia, um misto de agonia e nostalgia desértica
Mesmo que corroas e oxides em mim, permanece em mim
Mesmo que me cortes e me deixes em estado de choque
Eu não me importarei
III
Mesmo que pises sobre mim e me deixes morrer de inanição, em espírito seguir-te-ei.
Apenas não me tranca dentro de ti como um sonho imundo
Assim eu não fugirei da tua teia
Nunca me deixa desfrutando de um veneno que não me mata
Eu sinto tua falta e não posso evitar arrancar meus cabelos com as próprias mãos
Quero todas as ruínas nos livros
E todos os oásis no deserto
E os lírios nos túmulos
E tu ao meu lado até o dia do meu perecimento
Para que eu deixe de ser a estátua que me era conveniente
Como uma rosa azul tão bela que brota da lama da alma
Tudo há de prosperar uma vez mais
E a terra fecundará nosso esforço em vida
Construindo sobre os destroços e sobre as cinzas
O mundo nos notará
E o tempo irá curar todos os sentimentos maculados
IV
E de novo, e não em vão
Estuprarás meu coração com teus sentimentos
E mesmo no breu tudo será visto
A minha alma transcenderá e evoluirá ao teu lado
E o deserto virá com um mapa de todas as miragens e demônios
Sinto tua falta em cada milésimo de segundo procrastinado
E a minha pele dói e resseca sem teu toque
Sem o plúvio
Novamente
Inunda-me e transborda
Não posso evitar
Um dia sem ti dói muito porque tempo é tudo o que não tenho
E um dia sem ti é também como uma chuva ácida
E um mundo com crenças e ideologias ininteligíveis
Para que desperdiçar voz
Se o teu toque fala por nós dois
Em verdade, somente desejo, anseio e almejo um dia eterno ao teu lado
V
E eu conversarei com idosos e descobrirei crianças que brincam na areia da vida
E eu te mostrarei o que estava envolto em vergonha
E o sol brilhará e irradiará sobre a cabeça de um cometa
Tentarei não me banhar em remorsos mil
Para fazer da tua vida uma quimera
E te seguirei sempre como a tua sombra
Pelos caminhos mais belos regozijando-me com as tuas vitórias
Eu quero parar de andar no deserto depois de tantos séculos
Penso que se não estiveres no meu final feliz
Eu deixarei minhas lágrimas salgadas secarem o meu olhar
E meus pés descalços para que eles sangrem
E te mostrem por onde eu me perdi
Quero beber da tua chuva durante o meu dia
Mas à noite eu quero a tua calidez
Pois meu coração é como uma noite no deserto
Também estou cansado de pregar no deserto
Um dia sem ti não termina
VI
Eu sinto falta de um órgão que foi arrancado sem anestesia
Leva-me contigo
E tira esse piano das minhas costas
Eu te quero para me amar ou me machucar
Para me abraçar ou me humilhar
Para me respeitar ou me jogar na pocilga
Para recitar poemas ou coisas pífias
Tanto faz, fica aqui
Sinto a tua falta
E meus átrios ficam congelados por dias
Fico observando o que restou do teu sumo espalhado pelo jardim
Não posso explicar por qual razão não chove há um ano
Podes sentir o meu cheiro característico e saber onde eu estou definhando com a saudade agridoce, mas por que demoras?
Como escalar essa montanha tão íngreme e não cair?
Como parar o cone desse tornado com minhas mãos?
Como atravessar o ferro e o níquel do centro da terra?
VII
Não posso evitar estar tão apaixonado
Chove, chove e me lava e me leva
Deixa o mundo ruir debaixo dos meus pés
Salva-me da loucura e da neurastenia
E beija-me, deixando pedaços da tua boca por aqui
Ontem senti que algo se putrefaz, decompõe-se, deteriora-se dentro de mim
E que algo está vazio e negro
Trezentos e sessenta graus até o inferno que virou minha mente
E a única lembrança é o teu rosto, teu belo rosto esculpido por anjos
Faz alguns segundos que não estás aqui e sinto a tua falta há milênios
Não posso evitar estar tão apaixonado
Mas essa paixão é coisa sobrenatural
Deixa a multidão e vem ao meu encontro
O tempo é uma faca a dois centímetros atrás de mim
Se eu olho para trás
Ela me corta
Se eu dou dois passos para frente eu não posso mais voltar
Porque a faca se adianta no caminho
VIII
O meu ceticismo te assusta
E minhas ideologias são estranhas pra ti
Mas nós nos completamos
Mesmo assim a chuva é mais bonita quando há sol
Tudo que queimei
Tudo que deixei passar
Foi para te encontrar e não deixar-te ir
E te colocar na mesma algema que eu
Não há mais sentido
Na procura anciã pelo sentido
As coisas não precisam ter sentido se estás aqui
Eu sinto que essa ligação é costurada com linhas de titânio
Pois nada pode rompê-la desde a origem
Deixa teu amor me assombrar, consumir-me ou me anular-me
Não importa, um dia sem ti não tem dor humana que descreva
Ou morfina que alivie
É como uma dor sem prazer
IX
Cada homem na terra tem direito
De achar sua outra metade
E sem achá-la nós ficamos vazios e azedos
Como estrelas que não posso tocar
Tu estás tão longe e ao mesmo tempo tão perto
A tua fragilidade me encanta
Mas me traz receios
E eu me perco nas tuas qualidades
E no teu jeito
Eu rio sozinho
Estou tão feliz como nunca estive desde que nasci
E eu nasci faz tempo
23 anos atrás
Mas não sei porque dentro de mim há experiência demais
E velhice demais
Algumas pessoas nascem assim, se sentindo velhas por dentro
Não há explicação
X
Deixo para trás os amigos, a casa e o labor
Mas tu és o meu ouro sobre o azul
Mares cerúleos por onde eu preciso navegar
Para sentir
Para sentir-me vivo
Não importa o que eu faça, o que eu mude, o que eu corte
Eu vejo a teu face
E o meu esforço para não esquecer do teu rosto é sobre-humano
E estou nu no frio e eles estão com tesouras, mas não temo
Aquilo que eu não vejo me machuca mais do que aquilo que é óbvio
Chegando ao fim da trilha
Tu pegarás na minha mão ou me deixarás cair nos espinhos de aço?
Espero que a chuva caia logo
E leve meus fragmentos de volta ao oceano
Para que eu nasça novamente no teu mundo
Eu só quero te ter
Porque eu não tenho mais nada...A não ser chuva ácida na noite do deserto...