Solidão a dois

Não é por você estar velho, meu caro

velho e realizado

orgulhoso após os filhos ter criado

que você

com a sensação do dever cumprido

deve bater com tanta força no peito

se atirar nos braços da vida

na ânsia de viver o ainda não vivido

e esquecer daquela

heroína ela

cuja vida consiste nos braços teus

e que revive do cansaço após cada abraço teu.

Não é justo

e chega a ser absurdo

você nunca andou sujo

e ela nunca pôde lhe mostrar

as unhas bonitas que têm.

Foi ela quem lhe deu

os filhos que você queria ter

sem nunca faltar tempo pra você

e os criou

para que fossem iguais a você

e agora

após tantas fraldas trocadas

depois de tanto sono interrompido

de tanto leva e trás da escola

ela só quer repousar com você

ser sua

mas você prefere a rua

e ela é a mesma mulher

que você conheceu há tanto tempo atrás

porém com o corpo surrado

marcado

pelo tanto que ela apanhou da vida

com você

e se não me engano estava em seus planos

amparar e ser amparado

quando os ventos acalmassem

quando os netos brotassem

como quando um dia brotou o amor

que quando os uniu

fez com que vocês se entregassem

se integrassem

e repartissem as vezes um só pão

e quando não havia pão

também não havia desânimo não

e o que pra você hoje parece nada mais significar

nela no entanto tanto cresceu

ao sempre novamente e sempre de novo outra vez

descobrir o HOMEM além do PORTE

descobrir o COMPREENSIVO além do FORTE

e isso fez com que você

fosse um amante amado e amigo

e o curioso é que hoje

só você quer ostentar o troféu de heroico lutador

um monumento no interior de si

num ponto propício do ego

numa praça imaginária caminho de todas a histórias

e ela num canto de subúrbio esquecida

como o cavalo de Napoleão

do qual só sabemos a cor.

Porque é que ela

pobre aquela

tem que te ver chegando na fria madrugada

cheirando a álcool

a farra

quando ela

devia estar farreando com você?

Por quê?

E agora enquanto eu me dou pra você

e você me tem aqui

mordendo e sentindo seus dentes

sedentos de carne jovem

ela está em casa

sonhando com seu corpo

mesmo velho

mas não tem

talvez naquela mesma cama

onde ela foi mulher

onde ela realmente conheceu você

onde ela te fez feliz e o foi também

onde para ela começou um novo ciclo de vida

onde ela passou dos domínios dos pais

para os seus

porque ser mulher era assim

onde ela não pode e não quer ter outro

e você está aqui comigo

gozando delícias

saboreando bebidas finas

que não te embebedam tanto

quanto o meu perfume

porque a de casa está ultrapassada

sem atrativos e desalinhada

mas tudo isso aconteceu com você

e tudo isso aconteceu por você

e se lhe digo isso

é porque também sou mulher como ela

com um marido como você

porém não o quero como ela lhe quer

e foi com ela que você

chorou seus fracassos

desabafou suas decepções

curou suas mágoas e rasgou seu coração

e agora quando é chegada a hora

de comer com ela um fruto bom

após terem engolido tantos à força estragados

na hora de sorrir após tanto pranto ter rolado

hoje eu

e amanhã outra rirá com o seu riso

e pra ela como sempre sobrará

o resto do porre que você cura em casa

as roupas sujas de ruge ou batom

o cheiro de fragrâncias até então desconhecidas

no peito um grito

e na boca o silêncio para não lhe perder

que ecoa no interior dela

quando devia rasgar-lhe a garganta

pra deflorar o seu egoísmo

e ela então não mais ficaria da janela

na expectativa de te ver chegar

cambaleando se deitar e apagar

e como donzela

deixaria de ser o que é: SOLIDÃO

sensação que a sufocará

até que você se toque

até que você esforce

até que você se foque

e reparta com ela só um

pelos menos um

desses tantos raios de sol

que surgiram após anos de intensa tempestade

pra iluminar suas vidas

na segurança do amanhã atingido

e no entanto nos móveis de canto

ela até tropeça na escuridão

sem a luz que o sol enfim concedeu para os dois

e você egoísta quer só para si

não permitindo que invada a janela

nessa manhã de primavera

não permitindo que brilhe também

para quem tão bem devia brilhar.