de alma lavada
escrevi meu nome com um graveto na areia
eu não pretendia impressionar ninguém
olharam para mim e para o nome na areia
pensaram que minha mãe escreveu por mim
não acreditaram que eu já sabia escrever
minhas primas abriram carranca para mim
e depois apagaram meu nome com os pés
excluída das brincadeiras entre meninas
me restava sempre o bom e amável balanço
quando minha mãe me via sozinha lá
queria saber por que eu estava tão triste
eu contava que as meninas foram más comigo
ela comentava a respeito com as outras tias
e elas diziam que era "coisa da minha cabeça"
com 9 anos eu decidi não mais comparecer
aos aniversários daquelas meninas asquerosas
a mensagem estava muito clara para mim
a vida felizmente me privilegiou por 6 anos
conheci amigos que me mostraram o que era amar
eles preenchiam meus meses e anos com luz
nossos dialetos, nossos dramas, nossas risadas
a morte da minha vó me colocou frente a frente
com fantasmas há muito reclusos no porão da alma
a vó nunca pode ser minha vó no sentido literal
as loirinhas armavam escândalos se eu me aproximasse
então minha vó próxima sempre foi a por parte de mãe
fiz 15 anos meses antes e ninguém nem se importou
com o dinheiro da herança, fizeram festa pra uma prima
eu não queria fazer parte da palhaçada
mas quem disse que uma adolescente é ouvida?
a aniversariante fechou o sorriso de plástico
quando viu a minha família aproximar-se da recepção
uma prima solteirona e chata veio com a conversa
"festa de 16 é melhor do que a de 15, eu fiz..."
eu não estava despeitada
meus pais fizeram o que puderam
eu só não queria estar lá
preferiria mil vezes fazer prova de matemática
do que querer encher o salão com 300 pessoas
e no fim das contas dar de comer para estranhos
que nem sabiam por que estavam naquela festa
qual era o fundamento de fingir tanto?
na época eu não sabia desse detalhe
comprei a ideia de que ela era popular na escola
a menina mais bonita e enturmada
e que namorava o menino que dançou a valsa com ela
eu não sabia que ela ela dava em cima dele
e que aquelas meninas presentes não eram amigas
comprei a ideia da minha tia
a de que as irmãs satânicas tinham milhares de amigos
e viviam indo a festinhas e curtindo a vida
minha autoestima já frágil foi para o saco
eu gostava tanto dos meus cabelos curtinhos
mas reparei que o padrão delas era o cabelo gigante
com aquele liso de chapinha e extremamente magra
atribuí que elas não me aceitavam porque eu era feia
elas próprias disseram que eu era feia por ser morena
passei a perseguir aquele padrão "produção em série"
crente de que ele responderia minhas questões
nunca respondeu
porque há certas coisas que não são para ser entendidas
e não há nada que se possa fazer
senão fazer às pazes comigo mesma e seguir em frente
perdi muita coisa
não podia contar aos meus amigos sobre o meu passado
eu tentei enterrar a minha infância
mas as dores eram feridas abertas
levou muito tempo para eu compreender
que minha postura insegura atraía gente como elas
a fim de confirmar a rejeição escrachada
e me colocar cada vez mais para baixo, mais baixo,
o medo fez delas mais fortes e lhes dava "poder"
do medo à indiferença, um longo caminho a seguir
hoje eu sei que sou incrível e me basto
nem sempre foi assim
mãos suadas e trêmulas, taquicardia, vontade de chorar,
vontade de correr até os meus pés não suportarem
e estar sempre encurralada, à mercê, repetindo ciclos,
vendo a verdade ser engolida por espúrias conveniências
sou uma sobrevivente, o ódio delas não impediu de viver,
sou o meu próprio padrão, não preciso de aprovação,
não preciso de quem nunca fez questão de ser gentil
revoltada por ver gente má sempre saindo por cima
eu sentia um gosto amargo cada vez que engolia
comprando verdades de mentirinha e me comparando
tanto tempo perdido, tanto tempo iludida
ainda sem as respostas que tanto queria
trazendo dores antigas para o momento presente
mas de uma coisa estou certa: o tempo não volta
o tempo não para
o mundo não para
até que chegou o dia em que aprendi a ser indiferente
a situação não mudou, quem mudou a postura fui eu
aquela era a chave para o processo de libertação
fiz uma tatuagem para combinar com as cicatrizes
a vida sempre afasta quem não deve fazer parte da minha
a cargo do tempo fica o entendimento
quando uma tia mostrou uma foto daqueles tenros anos
passei a noite toda chorando e apaguei a foto do arquivo
eu não quis me ver, apenas chorei um choro necessário
dispensei palavras, apenas deixei o choro transbordar
e foi a última vez que chorei por causa disso
se não houver um balanço por perto para eu me sentar
posso encontrar dentro do meu coração um bom lugar
onde o mal não encontre nenhuma brecha para entrar
onde o amor flua como água cristalina e me embriague
e os olhos que me enxergarem possam ver uma pessoa
e possam enxergar também a si próprias com mais amor
o desamor abre feridas, o verdadeiro amor as cura
escrevi meu nome com um graveto na areia
eu não pretendia impressionar ninguém
esperava com expectativa uma pequena menina
tudo que eu mais queria era abraçá-la
dizer que a amava, olhar nos olhos dela e me ver
ela olhar para os meus olhos e ver o que se tornou
e também a esperança que os agressores tentaram roubar
passado e futuro de mãos dadas
sem rancor
sem acusações
selando num abraço apertado
um novo início
de alma lavada
deixamos um coração desenhado na areia e partimos
acordei de um sonho muito bom com a sensação
de que todos os caquinhos do meu coração foram colados
pronta para o resto da minha vida