VENCIDA POR UM AVIÃOZINHO DE PAPEL

Então a vida apresentou a conta

- Como, tudo isso? Caraca...

- É só isso, meu amigo, ou você achava que tudo aquilo seria de graça?...

Ficou um clima meio chato, um tanto pesado. Sabia que um dia chegaria aquele boleto, mas assim, de sopetão, pegou de surpresa.

- Dá pra ter algum descritivo mais detalhado? Algo que eu pudesse saber o que estou pagando?

Não era praxe pedirem descritivos. Normalmente ela mostrava o valor total e as pessoas pagavam. Muitas chiavam, mas pagavam.

- Tá bom, isso é pelas paixões que você teve.

Ele sabia que não foram tantas paixões assim. Além do mais, muitas delas não passaram de beijos ralos, do tipo que não deixam pistas, nem sobras, nem sombras.

- Eu nem lembrava de todos eles. Alguns fazem tanto tempo que você bem que podia deixar barato...

Com a vida não tem negócio. Fez, pagou. E pronto.

- Pra mim o tempo não conta. Tudo que você teve, passou, sentiu, está registrado e temos que acertar. Não vem com essa de pedir desconto agora. Na hora você não pensou em desconto, pensou?

Não adiantava aplicar toda sua lábia de vendedor senior pra enrolar a vida. Ela tinha tudo registrado e estava cumprindo o seu papel, que é cobrar as coisas que proporcionou. E não foram poucas.

- Peraí... Com a Lurdinha não passou de uma roçada de mão no cinema quando eu devia ter menos de quinze anos!

A vida estava ficando irritada com aquela ladainha. Mas não se deixou abater, foi irredutível querendo cumprir seu papel naquela hora. Mesmo que não tivesse passado de uma leve roçada da mão quando mal o filme tinha começado. Por sinal uma porcaria de filme.

- Quando meu gato morreu, eu chorei dia e noite por uma semana. Não vai querer que eu pague também por isso...

Não era um julgamento para tentar identificar o que merecia ou não merecia ser cobrado. Tudo que fez seu coração sair do trilho, que fez sua cabeça parecer querer se descolar do resto do corpo, foi dado pela vida. Nada caiu do céu ou veio do nada. Ele tinha que entender que estas coisas deram trabalho pra lhe acontecer. Bolar o enredo, reunir personagens, produzir cenário e fazer o roteiro ser cumprido de cabo a rabo não foi coisa de amador.E tinha seu preço, claro.

- Eu sempre quis ser aviador. Quando era moleque e fazia aqueles aviõezinhos de papel, jogado-os para longe com toda força que tinha, era eu quem estava dentro deles. Era eu quem rasgava o espaço com a força de milhares de gaviões numa desenfreada euforia por chegar cada vez mais longe.

A vida foi procurar nos seus escritos algo que falasse destes aviões de papel. Olhou, revirou e nada encontrou. Fez isso umas dez vezes seguidas. Estava já ficando impaciente, porque tudo que havia acontecido deveria estar de alguma forma registrado. E não havia nenhum sinal de menção ao tais aviõezinhos.

- Desisto, não tem nada mesmo. Esta você ganhou. Droga.

A vida então reuniu suas coisas e foi embora. Com toda aquele cancha, toda aquele experiência desde que o mundo é mundo, nunca poderia imaginar que seria vencida por uma porcaria de aviãozinho de papel. Mas tinha que reconhecer que perdeu aquela batalha. Da outra vez talvez se saísse melhor. Maldito aviãozinho de papel!

Quando a perícia chegou, ainda tinham algumas labaredas fraquinhas que lutavam bravamente pra não morrer de vez. O resto tinha virado cinzas. A fumaça ainda preenchia todo o espaço dali. O corpo estava caído ao lado da escrivaninha, na verdade nem parecia mais um corpo. Era uma massa inerte, que pouco conservara da aparência original. Se não fosse pela correntinha com a medalhinha de São Jorge, não daria para dizer que aquilo um dia fez parte da raça humana. Coitado dele, acabar assim, não merecia isso, não mesmo.

- Tem mais uma coisa...

A vida parou e olhou pra trás. Não era comum ser chamada assim quando estava partindo. O que será que ele queria agora?

- Fui o melhor fazedor de aviãozinho de papel do mundo. Só eu sabia produzir aquele bico perfeito, aquelas dobras perfeitas, cada aviãozinho era uma obra de arte, cada um melhor do que o outro. Vinha gente de longe só pra ver a lindeza de voo que eles faziam. Alguns até rodopiavam no céu. Dava gosto de ver.

Então a vida sorriu. Não um sorriso escancarado, debandado, Mas um sorriso de canto de boca, meio trêmulo, meio enebriado. Ela tinha sido vencida por um aviãozinho de papel. E foi embora de vez, com o rabo entre as pernas. E nunca mais voltou.

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Oscar Silbiger
Enviado por Oscar Silbiger em 01/05/2016
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