dia das crianças

Sei que darei conta.

Sempre dou conta.

Faz tempo, isso.

Mesmo quando não dou, parece. Convence.

Driblo a embriaguez como quem disfarça cheiros.

Mas temo não sobreviver a ser feliz.

A liberdade custa, desgasta.

Tem efeitos colaterais graves.

O corte da couraça é trauma.

A cicatrização é de fundo e lenta.

(Meus músculos doem, minha boca seca.

Uma bruma toma-me o pensamento.

Meus dentes rangem de lúcida loucura).

Um contrassenso, eu.

É esse não saber não ser intenso.

Essa antiguidade romântica.

Essa inevitabilidade à sedução do drama.

Que já não mais enceno, mas vivo, sob sorriso.

Que é real, mas não é só.

E as armadilhas, que teço com meus inesgotáveis palpos.

Esperáveis e surpreendentes inesgotáveis palpos.

Inevitáveis armadilhas teias tão óbvias.

Como se não soubesse de onde vem o que penso.

(De onde vem o que penso?

Quanto disso tudo é de mim?

Quanto de cada coisa é de quem de mim?)

Não caio, mas estou sempre a trançar-me os passos.

A tropeçar discretamente nos salientes pés de todas as cadeiras.

Como quem se pune desmentindo, absolvendo.

Minha vida é a tempestade que se desprendeu da contenção do tempo.

Sem água bastante ainda. Só gotas inúteis, vento, poeira e raios.

E talvez sempre me parece tarde demais.

Ainda que fosse antes.

Não consigo mandar a dor ao raio que a parta.

Porque a paixão me é inalienável.

É essa integridade insana que me mata.

(É tarde ou só está escuro?

Era dia das crianças hoje que já é ontem.

Era dia de quem?)

E guardo camafeus como joias.

(Bisonhava o primeiro pedaço acidental?)

Ilusão é erva daninha súbita.

Cresce de uma vez e do nada.

Instala-se como quem não vai embora nunca mais.

Sem cura possível.

(Hoje é já amanhã e eu aqui...

Chamaram-me senhor!

Nunca escaparei à falsa excelência).

Bisonhava desnudar-me apenas quando as máscaras são já obrigatórias?

(Enfin, il faut vivre).