Balança

Tinha uma cota. Enxia e esvaziava-se. Tomava nota, angulava a balança. "Hoje não posso". Não pode o que? Perguntavam, mas ele sempre respondia porquê. "Porque tô cheio"

Um dia lhe assombrou a ideia de estar-se a vida toda enganando da sua própria capacidade. Querem que eu acredite que não posso... O jeito era ousar, tentar dar saltos para vislumbrar por trás do muro que criara se havia além ou se realmente a frente estava o véu de algo que ele realmente, em sua alma e seu corpo, não podia.

O jeito era trocar todas as vezes o não pelo sim. E algumas vezes o sim pelo não, para não falarem que ele enlouqueceu. Mas falavam:

- tá maluco

Os que ele não escutava mais. Aconteceu de aparecerem os que diziam os nãos e os sims igual com os que ele dizia. E todos falavam do passado. Questionam a balança. Pra eles o problema era o ângulo mal alinhado, mais tarde o problema era medir.

Ele só não conseguira desvirtuar o que não era ação. O que não era parecer, porque tinha que ser.

Encenava. Ou pensava que encenava. Já não sabia mais. Era difícil desarraigar a mania. As vezes tentava emendar um "sim", mas quando era sozinho aquilo nunca saia. Não prestava para viver. Agora que sabia, sabia que haviam pessoas desmedidas, não se perdoava em nada.

Leu alguma e ouviu ela falando sobre estar cheia de vida num momento e no seguinte de não ter nada. Pensou que talvez não devesse ter largado a balança, mas talvez devesse ter testado melhor sua capacidade. Talvez alargado mais as medidas. Sobretudo, porque pensava em ter tanta coisa da vida?se não podia nem conseguia gozar de todas essas coisas.

Não gozava mais de nada.estava brando como antes, mas não como antes. Odiava as pessoas que agradeciam seu retorno, mas em seu íntimo tinha um medo absoluto de que agora estivesse apenas encenando não ser o que era em antes. Pequeno. E que nunca tivesse mudado, que tivesse tido a impressão de ser maior do que era por estar disperso, mas que na realidade, sabia, sempre soubera e nunca haveria de deixar de saber que tinha exatamente, pelo ângulo da balança, exatamente a mesma medida.

E que estava preenchido de vergonha e dor e não haveria espaço para outra coisa.

As vezes encenava passar bem. As vezes encenava o cotidiano. As vezes encenava ver significado nas largas explorações que tinha empreendido naquela outra época, e encenava imediatamente não ver sentido nenhum, logo em seguida.

A regra era estar errado. A medida era não se caber. Havia de explodir por ter perdido o controle. Havia de explodir por sempre ter sido inábil de ter controle. Lembrava-se de todo o custo do processo de constatar sempre o quanto encheu e o quanto esvaziou. Oneroso. Atividade que ninguém labutava com tanta dificuldade além dele.

Sempre encenando que na verdade não fazia ideia de como se media. Pensou se queria fazer ideia. Encenou que sim, mas percebeu que encenava. Ficou orgulhoso de si por saber se perceber com tanta clareza. E reafirmou: a verdade é que não estou nem aí.

Abdicou do olhar da racionalidade. Entregou-se aos "Sims" e aos "nãos" sem saber exatamente quando cada um viria, mas feliz de não ter pensado porque "sim" ou porque "não".

Voltou a falar com quem deixara de falar. Não sentia mais agonia de abandonar com quem falava. Um dia, entretanto, esvaziou-se subitamente num momento em que nem sabia que estava cheio. Foi como explodir, mas tão rápido, tão rápido que não tomou nenhum dos maiores sentimentos que já o levaram para o nada mais massivo entre seus dias. Foi como um balão estourando. Vazio, mas inalienavelmente ativo, inalienávelmente corruptor do silêncio que era a vida.

Encenou a si mesmo e morreu.

Nia Ferreira
Enviado por Nia Ferreira em 01/12/2022
Reeditado em 01/12/2022
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