Carta ao Viajante
Viajante:
O tempo é outro aqui,
Tudo muito estranho, muito sem cor;
Todo mundo está doente de algum mal,
Geralmente um mal da mente ou coração
Quando não dos dois juntos.
Não venha!
É sério, é conselho, é pedido.
Hoje aqui já nos esquecemos
Do que as pessoas são feitas,
Do que falar para quem sofre,
Do que fazer um pelo outro.
Todo mundo jura sua vida
Pelo próprio relógio,
Como se a hora fosse diferente
Em cada aparelho preso ao pulso.
O tempo aqui não para,
Como também não para aí, viajante.
Relendo a história,
Eu sei que está triste aí,
Mas ninguém aqui nunca
[Nunca mesmo]
Conheceu felicidade.
Pra gente daqui, tristeza é protocolo.
Quem sobreviveu daí até aqui,
Anos e anos de viagem,
Só dói em existência...
Uns rezam para se acabarem logo
Em qualquer coisa inexata,
Apenas uma redenção que seja
Para aquilo que é lembrança,
Para aquilo que zune ao tímpano
De dentro para fora.
Aqui, viajante, anestesia é massagem;
Ao lado da xícara do café que foi pedido
Vem uma dose de morfina,
Para que todos completemos, mesmo em soluços,
Mais um dia.
Eu conto sempre em negativos:
Menos um dia.
Quanto mais próximo parecer o fim,
Mais calmo me encontro,
Mais sábio me sinto,
Com a certeza que já já o inferno se esfria,
Pelo menos para quem vai.
Nessa época de agora,
Até os feriados estão distorcidos.
Quase não comemoramos o natal,
A páscoa e essas coisas, viajante...
Por aqui celebramos as descobertas
Dos ansiolíticos, antidepressivos, calmantes,
Analgésicos, antinflamatórios e a injeção d’água...
O dia da paz parou de fazer sentido,
Porque aqui ninguém faz ideia do que isso é.
E olhe que não sobrou nada
Pelo que guerrear.