PARADOXO DAS CRUZADAS

PARADOXO DAS CRUZADAS

Duodecaneto de William Lagos

PARADOXO DAS CRUZADAS I

No tempo em que eu nasci, só paz havia

Entre cristãos e muçulmanos submissos;

Cruzada não havia entre os castiços

Ensinamentos consagrando a teimosia

De uma crença; entre os cristãos mais existia

O afastamento daquele ideal maciço

Que levara a tais lutas, pois remisso

Estava o povo contra o combate da heresia.

Apogeu sendo de uma democracia,

Que pregava a liberdade em religião,

Embora contra mim certa perseguição

Tivesse experimentado, pois trazia

O estigma de ser um protestante

Em um país de romanismo dominante.

PARADOXO DAS CRUZADAS II

Deste modo, empreendi minha própria vida,

Tentando ser eu mesmo, sem querer

Impor aos outros meu jeito de viver,

Mas sem tampouco acatar ordem temida,

Ante a alheia imposição sofri ferida,

No íntimo do peito a receber

Os frutos da exclusão e ao padecer

Por razões numerosas nessa lida.

De minhas pretensões não fui cruzado,

Fui tão somente um pária rejeitado

Pelos impulsos dominantes na nação,

Um pouco por meu gosto pela arte

Ao invés de futebol, excluindo-me destarte

Dessa grande e ensimesmada multidão.

PARADOXO DAS CRUZADAS III

Fui em cruzada até o hemisfério norte,

Busca inconsciente pelo meu destino,

Depois voltei, completado o desatino,

Por entre os hippies fui tentar minha sorte

No meio deles, enfrentei a morte

De muitas ilusões, mas outro sino

Tangeu em mim, num sonho pequenino,

Pensando ao mundo atribuir um novo aporte,

Sem cruzadas, afinal, somente a parte

Que me cabia e assim quis ser Jerusalém,

A retomar e gastar todo o meu bem,

Mas fui expulso de novo, um Malazarte

De teatro e música que escolhi também,

Em vão batendo nas muralhas dessa arte.

PARADOXO DAS CRUZADAS IV

Sempre faço mais que os outros no que empreendo,

Mas não sou Godofredo de Bulhões

E nunca pude conquistar os corações,

Nenhum deles inteiramente me contendo;

Por isso, num concurso nunca prendo

Tempo e dinheiro, tampouco em eleições,

Sabendo inútil dominar as multidões,

Só a um punhado de indivíduos eu atendo,

Nem tanto por os julgar merecedores,

Mas na esperança de que me possam compreender,

Enquanto eu mesmo nem sequer entendo

Porque minha mente, recebendo mil louvores,

Nunca aprendesse o jeito certo de bater

Para quebrar a gaiola em que me prendo.

PARADOXO DAS CRUZADAS V

Foi então que meus monstros do inconsciente

Começaram a urrar a sua opinião

Por outros modos de manifestação

Que as desfeitas rebeldias do presente,

Surgindo assim esse tapete redolente

De mil poemas sem fim, em comunhão

Rebeldes uns aos outros, produção

Das vozes roucas de meu rancor pungente.

Manifestaram-se assim os Sons do Id,

Travestidos em alegrias ou oprimidos

Pelo sabor de sal amargo em sua doçura,

Porque esses versos não sou eu quem os decide,

Eles choram por si, extrovertidos

Em seu mal repugnante de ternura.

PARADOXO DAS CRUZADAS VI

Não se interessam por vencer os infiéis,

Mas por cumprir missão mais peculiar,

Essas vozes internas movidas a expressar

O quanto não puderam em seus lauréis

Enquanto vivas eram. São bedéis

Que impõem a sua bondade ao chicotear,

Que ensinam mansidão ao revoltar

Contra toda a autoridade e seus quartéis.

Pois mortos sejam, de certo modo eu capto

As vozes desses mártires cantantes,

Que mais queriam sofrer que converter

A seu ideal abstrato e mentecapto,

Nesse êxtase fatal dos delirantes

Que em mim expõem o ordálio do viver.

PARADOXO DAS CRUZADAS VII

Eu apenas me dedico a ideal mais fino

E vejo a mim no brilho de seus olhos,

Reflexo de reflexo, mil refolhos

Recolhendo em sua trilha o peregrino,

Nessa demarcha o bimbalhar do sino

É o som de teus cílios sem antolhos,

Que bate e rebimbate nos escolhos

De imagens mortas para que me inclino.

Eu olho para os teus e a mim me vejo,

Quando me vês a mim e a ti te vês

E eu vejo que te vês mais uma vez

E tu vês que em ti mesma me revejo,

Meus próprios lábios são os teus que beijo

E a cada vez que te vejo, me revês...

PARADOXO DAS CRUZADAS VIII

E lanço a âncora deste meu veleiro

A penetrar no mar de ti, o meu oceano;

Tuas velas eu parti, rasguei o pano,

Somente as algas são teu manto derradeiro.

E ao penetrar em ti, no meu sendeiro,

Minha corrente te prende, sem engano,

Meu molinete te aspira em meu afano:

Eu sou teu novo mar e és meu primeiro.

Como o sangue da serpente te fecundo

E nesse mar que é meu viras espuma,

És Vênus-Aphrodite, a mais jocunda

Das deusas que meu ser assim afirma,

Água de oliva, o sal que me rotunda,

Nas mil volutas do verso que se esfuma!

PARADOXO DAS CRUZADAS IX

Qual reflexo de ti, deixei de ser

Um ser independente, eu sou em ti,

Que em ti somente é que sobrevivi,

Vivi sonhando em apenas te reter,

E ao te reter, em ti me derreti:

Derreti-me sem mágoa, ao ver-me ali,

Dentro de teu olhar, quando senti

Sentir por vez primeira meu viver.

Esse viver que antes fôra qual fantasma,

Fantasma de mim mesmo, que nem era,

Não era nada se não te conhecera,

Reconhecera o que até hoje me pasma

No pasmo que senti, falto de nexo,

Salvo o nexo de sentir-me o teu reflexo.

PARADOXO DAS CRUZADAS X

Eu bem queria ter as alas da alvorada

E me lançar a teu mar, sem mais demora;

Talvez eu fosse empós do meu outrora,

Talvez seguisse derrota inesperada;

Mas nesta trova à mudança consagrada

É preciso meditar qual seja a hora,

Que aqui “derrota” é o mais antigo embora

E só menciona uma rota demarcada.

Hoje naufrágio e derrota são sinônimos;

Só busco a rota e a derrota temo,

Temo o naufrágio no buscar da madrugada

E madrugada e aurora são parônimos

E sob a imprecisão dos termos gemo,

A luz das liberdades sempre adiada.

PARADOXO DAS CRUZADAS XI

As gaiolas nós fazemos ou deixamos

Que façam para nós; não protestamos;

Pouco a pouco a nós mesmos bitolamos

Nas exigências sociais em que atolamos,

Pois desde a infância nos acreditamos

Dentro de tal moldura e até ajudamos

As barras a firmar e as aparafusamos,

Com os pinos e rebites que ganhamos

E é tão difícil esquecer o que aprendemos,

Pois nos podaram, cuidadosamente,

Nosso desejo de em nada acreditar;

Por isso é que este mundo em que vivemos

É o que moldaram, minuciosamente,

Mortos que a vida em nós buscam conservar.

PARADOXO DAS CRUZADAS XII

E quem nos diz não seja o mundo diferente

Deste mundo chinfrim em que vivemos?

Se tudo aquilo que por belo temos

Não passa de um reflexo que a gente,

Na parábola do filósofo descrente,

Ajuda a conservar só porque cremos?

Quando a caverna e as sombras percebemos,

Apartados de um ideal magnificente.

Quem sabe, enfim, se achei a minha cruzada?

Jamais fui eu que tomei Jerusalém,

Mas sempre posso compartir visões do mundo;

Que em meus poemas certo toque de alvorada

Quebre essa sina e assinale-se também

Para os clarins tocar no véu profundo.

William Lagos

Tradutor e Poeta – lhwltg@alternet.com.br

Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com

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