Os Deuses Também Morrem - Homenagem à Fernando Pessoa

Se tenho a alma sofrida e triste

vós me exigis a alegria artificial de um espantalho.

Se nasci feio e desprovido de encantos,

vós não me suportais e me bateis a porta na cara,

sem nenhum remorso, batendo as mãos,

indiferentemente.

Se vivo apenas do meu trabalho

e isto me traz felicidade,

vós me desprezais

porque sempre dependestes

do trabalho alheio

para poder viver.

Se após muito esforço

consigo esboçar um sorriso,

vós começais a escarnecer,

porque estou sorrindo

para aquém da alegria, amareladamente.

Sereis todos, por acaso, deuses?

E que não usam espelhos?

E por que, diabos, tenho eu de atender

a todas as vossas rígidas exigências,

para que possa ser aceito em vosso convívio?

Vós apenas fazeis exigências

sobre o que não posso modificar,

porque nasci assim,

defeituoso como um ser humano,

e mesmo que desejasse atendê-las,

nada poderia fazer,

pois que isto está além

da possibilidade de mudança.

Entretanto mesmo quando estou evoluindo,

construindo novas imagens de um mundo melhor,

nada disso vos interessa,

pois que estou fazendo

apenas aquilo que posso fazer,

com os elementos que tenho acesso.

E até mesmo os sonhos, a imaginação,

os alimentos do espírito,

são desprezíveis à vossos olhos,

porque é algo que ainda posso construir.

Neste mundo habitado e dirigido por deuses mortais,

eu sou mesmo incompetente

se disponho apenas dos sonhos e da imaginação.

Mas, ó deuses, imperfeitos arautos

da perfeição impossível!

Por que não consigo satisfazer vossos caprichos,

mesmo quando realizo alguma proeza,

ainda que pequena,

ainda que humana,

ainda que dentro das minha possibilidades?

Por que me condenais à estagnação perpétua,

e não podeis admitir que eu seja capaz

de criar a beleza de um outro mundo

que tentais insistentemente desconhecer?

Imagino o esforço que fazeis

para manter essa máscara divina,

presa à face exigente e fria.

Avalio o sofrimento por que passais,

ao tentar sufocar vossas limitações humanas,

para poder exigir de nós,

a postura de super-homens.

Se algo existe a nos separar

é apenas uma linha frágil,

entre os que aceitam as limitações humanas

e os que se sentem ridículos

sendo apenas meramente humanos.

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(*) Publicado em:

1) "Boletim da Banca do Pó-etá" - Nº 12 - DEZ/1988 - Rio de Janeiro (RJ)

2) "Poesia & Prosa" de Marisa Fillet Bueloni - JUL/1988 - Piracicaba (SP)

3) "O Vale do Aço" - JUL/88 - Cel. Fabriciano (MG)

4) Publicado em "Poesias ao Sabor do Vento" - http://www.bchicomendes.com/dcarrara/psicog.htm