Metástase humana

Perdoem-me e suportem-me, por favor

Sou um doente em fase terminal

E no momento de declarar minha dor

Suplico um pouco de atenção especial.

Quando se fez o Paraíso pela vontade Divina

Tudo era bom e reinava a harmonia

A paz fluía por cada vale e campina

E a bondade a tudo regia.

No entanto, veio o pecado capital

A desobediência de Eva e Adão

Às ordens dadas pelo Pai Celestial

Fez nascer a ferida da putrefação.

O Homem multiplicou-se por mim

E carregou as mazelas consigo

Ao nascer iniciou-se o meu fim

Para dar ao Homem seu castigo.

Logo veio o primeiro fratricídio

E a desgraça tomou formas descomunais

Desde então se seguiu muito genocídio

Trazendo consequências infernais.

Precisou-se fugir do Egito

Precisou-se abrir o Vermelho Mar

Nem sequer ouviu-se o grito

De Jesus que se precisou crucificar.

Nesse momento ainda estava

No começo a minha doença letal

Cada sintoma me marcava

Mas nascera em minha fase fetal.

Voltemos à minha dor lancinante

Provocada por tanto ser hipócrita

Que vi nascer e crescer tão brilhante

E hoje é alimento de saprófita.

Minhas carnes foram rasgadas

Meus pulmões encheram-se de fumaça

Minhas hemácias envenenadas

E minha vida perdeu a graça.

A doença foi evoluindo

Há milhares de anos se aproxima a morte

E aos poucos estou descobrindo

Que não tenho mais norte.

Em mim já tantas guerras

Tantas vezes tão sangrentas

Fizeram em minhas terras

Por ambições tão nojentas.

Este câncer milenar que me corrói

Já matou brancos, negros, índios, amarelos e judeus

Na Europa, África, América e Hanói

E em todos os cantos procura-se Deus.

O que mais me maltrata a estrutura

É saber que quem me matar começou

O vírus desta mina amarga agrura

É aquele que de mim se alimentou.

A doença sempre em evolução

E a imensa célula doente

Causando guerras sem razão

Leva-me ao fim iminente.

Foram tantas guerras históricas

Desde os tempos de Jesus

Que nenhuma de todas as retóricas

Conseguiu mostrar-me a luz.

A cada tique-taque aproxima-se a minha morte

O tempo é mestre cruel e incorruptível

Ele é dono de todo tipo de sorte

E não escolhe a quem dar a boa ou a terrível.

Todo o meu átomo ínfimo

Já sente a dor do extermínio

E mesmo que eu muito lastimo

Irei com certeza perder meu domínio.

Crer em Deus? Por qual motivo?

Ele é meu senhor e dono da consciência

E o simples fato de estar vivo

Faz-me crer em Sua onipotência.

Deus, no entanto, é o Ser Perfeito

E por ver-me assim castigado

Mesmo sentindo forte dor no peito

Limpar-me-á de modo irrefutável.

A dor é triste, porém necessária

Estou doente e ficar bom eu necessito

Pois minha hóspede foi mercenária

E na minha cura eu acredito.

Agora este câncer já está espalhado

Porém, já não está mais escondido

A morte é certa e o destino é programado

No entanto, não serei banido.

Não consigo mais respirar

Meu sangue flui com pesares

Intoxicaram todo o meu ar

Poluíram meus rios e mares.

O sol, meu herói e meu vilão

Manda-me seus raios e calor

Mas o céu cheio de poluição

Prende-os, causando enorme estupor.

Não! Deus não me fez desta maneira

Nasci para leito de paz, amor e prosperidade

O que vejo, entretanto, é uma grande besteira

Um suicídio coletivo da humanidade.

Tolerem, por favor, minha agonia e delírio

Pois estou próximo à última morada

Aliviem, imploro, o meu martírio

Para que nossa passagem seja tranquilizada.

Aos que preconizam o sincronismo

E a lógica sequência do pensamento

Espero que deixem esse cruel cinismo

Antes que se torne maior este tormento.

Já foram muito verdes os meus cabelos

E meu sangue transparente, verde e azulado

Mas por causa de terríveis pesadelos

Tornei-me calva e com sangue maculado.

O petróleo, a química, a fumaça

A ganância, a ambição e o humano

Foram minha completa desgraça

Fui e sou vítima de um perfeito engano.

O ser herbívoro, caçador dependente

Tornou-se feroz assassino e canibal

Quis algo melhor para seu descendente

E junto com o Bem fez mais Mal.

Aaaaaaaaaaai! Que dor mais que insuportável

Meu alívio é saber que os vermes de minhas entranhas

Devorarão de forma eficaz e inevitável

O ser que me causa dores tamanhas.

Aos que se enojam do que falo

Calem-se e regurgitem suas mentiras

Não podem me impedir, pois não me calo

Apesar de saber-me cercado de traíras.

Aceito meu fim, não sou covarde

Mas preparem-se para minha revanche

Pois a ferida de chama que em mim arde

Será a bola de neve de minha avalanche.

Socorro! Grito em desespero

A metástase já se metastasiou

E por todo esse entrevero

Infelizmente o sonho paralisou.

Minhas células guerreiam entre si

Num ato nu, cru e antropofágico

Não ligam mais para o que senti

E com certeza o fim será trágico.

Eu, não se espantem, sou o mundo

Agora só resta carregarem-me em seus braços frágeis

Rumo ao inevitável caos sem fundo

Para enterrarmo-nos e nos tornarmos voláteis.

Chega! Eu, mundo, não direi mais nada

Meu desejo único é viver novamente

Uma vida nova e acompanhada

De felicidade e não mais ser doente.

A humanidade foi minha matricida

Filha desnaturada e adotiva

Que podendo ter um paraíso quis uma vida

Progressista e ironicamente recessiva.

Agora, caros e improváveis leitores

Quem vos fala é este poeta pequeno

Que sabe a vida ser não só de flores

Mas crê num mundo mais sereno.

Este poema não é uma profecia

E sê-la não pretende

É apenas a análise da agonia

Que existe e não se entende.

O mundo esgota seus recursos naturais

Porque a desejada eternidade inexiste

Há muito o homem evoluiu demais

E regrediu ao seu ponto mais triste.

Multiplicamo-nos e subtraímo-nos aleatórios

E sem motivos que justifiquem muitos atos

Que muitas vezes são atos inglórios

Que marcam a História com tristes fatos.

Caros leitores, olhemos ao nosso redor

E paremos de culpar a Deus por nossas falhas

Pois Ele sabe nosso destino de cor

E nos reserva além de paraíso as infernais fornalhas.

Aos que preterem os realistas

Profetizando uma utopia de pseudo-quimera

Um recado breve e final de mensagens fatalistas:

- Atenção, pois o destino é um ônibus sem ponto de espera.

Cícero

Cícero Carlos Lopes
Enviado por Cícero Carlos Lopes em 14/11/2011
Reeditado em 07/12/2016
Código do texto: T3334816
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.