O que dizer?
Quando por demais o sol se prolonga
No sertão que só por imagens conheço
O sofrimento, como o sol, também se alonga
Dessa gente seca cujas vidas não têm preço.
Se a imagem do gado morto por inanição é triste
O que dizer, então, do espinhento cacto
Que não alimentando mais o gado que inexiste
Está agora, raro e ralo, dessa gente como único prato?
Que dizer da inconsolável mãe que chora
Ao ver, inerte, seu rebento morrer de fome?
Que dizer do duríssimo pai cujo ego se devora
Ao ver sua condição de homem ficar sem nome?
Que dizer da criança raquítica e desnutrida
Que só tem forças apenas para chorar
E agarra-se ao seco seio materno buscando vida
E nada encontra porque nada há a encontrar?
Se tal condição é um divino castigo
Que Deus esclareça o mal que fez essa gente
Para que ficasse assim em casa e sem abrigo
Contra uma situação tão humilhante e deprimente.
Que dizer do sertanejo que se exila
Em todas as grandes cidades
Onde a sorte má o aniquila
E ele se esfacela em tantas calamidades?
Se no sertão era a secura da terra
Nas cidades grandes é a secura de coração
Se por água e comida no sertão era a guerra
Nas cidades grandes, além disso, há a mental poluição.
Que dizer do mendigo, indigente que come lixo?
Que dizer da mãe que para alimentar os filhos
Uma cebola rouba e é presa como um bicho
Feroz e imensurável que um trem tira dos trilhos?
Que dizer do trabalhador ferido em seu ego
E tem suas esperanças todas desperdiçadas
E como Cristo tem os pés unidos por um prego
E as mãos abertas e clementes também pregadas?
Que dizer do índio queimado, dos pais assassinados,
Das filhas prostituídas e drogadas pela vida morta?
Que dizer de todos os miseráveis esquecidos e ignorados?
Que dizer da desigualdade, esta maldita e fechada porta?
Que dizer de quem toma champanha e fino vinho
Enquanto jorra sangue dos noticiários dos jornais?
Que dizer de quem se alimenta de espinho
Enquanto outros se fartam em mesas carniçais?
Nada há a dizer, estúpido sistema
Tudo há a fazer, inerte organismo
Não há que se provocar mais edema
Há apenas que se curar tamanho pessimismo.
Cícero – 08-11-02