A análise

ÚLTIMAS UNIDADES!

Anuncia o homem com o terno gasto

O senhor com o terno impecável e barato

O menino com chinelos e calças largas.

Apartamentos, um lugar no céu, um picolé.

E são tantos os prédios nesta cidade que já não lembra mais nada.

Altos, muito altos, quase tocando o céu.

O mesmo anunciado pelo homem de terno impecável.

Todos querem o conforto de suas caixas cimentadas de sapato,

a presença do Divino, e um picolé nos dias quentes.

Um, dois, cinco, cem carros passam velozmente.

Maquinas enormes, guiadas por pessoas tão pequenas.

Dos apartamentos, já vendidos, alguns olhinhos infantis,

[cercados por grades e câmeras seguras,

Enxergam o estranho mundo que os rodeiam.

Celulares caminham sem direção, cachorros levam seus donos

[para tomar ar.

Olhos, onde estão os olhos?

Nos céus, trancados em apartamentos, encerrados em carros blindados?

É tanto barulho, tanta gente, tanto prédio,

Tanta, tanto, tontura, e falta tudo, tudo, tudo.

Longe, bem longe dali,

numa rua sem saída nem segurança,

crianças brincam como vivem,

sem grades, como se tivessem asas e pudessem alcançar o céu.

Alguém liga uma mangueira,

uma criança chora,

a chuva começa a cair.

Já é de tarde, mas nada mudou.

Continua o barulho, o trânsito,

os celulares e cães continuam caminhando.

As pessoas ficam ao lado, subjulgadas.

Latidos, telas coloridas, rodas cromadas,

pessoas comuns, mas que não sabem disso.

Tenho isso, sou aquilo, desejo algo, preciso de tudo!

Muita gente alta, que vive em frestas.

Longe, não tão longe dali,

crianças não brincam, trabalham.

Balas, duchas em carros, malabarismos,

progresso da cidade.

Um homem dorme no banco de uma praça.

Um deficiente cata papelão.

Perto, logo ali,

num terreno abandonado,

um louco, são de suas atitudes, anuncia o fim do mundo:

- ARREPENDAM-SE!

Ele virá, de barba bem aparada, túnica branca, cabelos penteados,

olhos claros, coroa e estigmas. A imagem do sofrimento.

Dirá que o Pai, folgazão lá no céu, enviará raios furiosos,

despertará vulcões, enfurecerá os mares, destruirá os pecadores.

No entanto, sim, os imaculados serão salvos.

Logo enche de gente ao seu redor.

Advogados, médicos, tanta gente ilustre, senadores,

cada qual com a convicção de sua pureza.

Um jovem, sentado no chão de terra seca,

toca uma triste melodia no seu violão velho,

de cordas cansadas e cravas quebradas.

Alguns deixam o profeta de lado

e rodeiam o moço do violão.

Balconistas, prostitutas, tanta gente comum, trabalhadores.

O rapaz solta a voz:

- Minha gente que aqui se ajunta

Que não enxerga nem mesmo pergunta

Digo que não vim causar tumulto.

Tenho cá nesta cabeça

Muito verso, pouco assunto.

Lá na minha terra, o que se tem é o de sempre.

Ninguém tem mais do que antes,

nem é triste nem contente.

Mas aqui, quando cheguei,

vi todo mundo diferente.

Tanta gente infeliz,

Mas que empina o nariz,

maquiando o semblante.

É muita pessoa muda,

mas que conversa com máquina e bicho.

Ou será que é gente surda?

Eu questiono, deixa disso!

Vim pra cá pensando alto,

mas tomado de assalto,

vi o erro que cometi.

Hoje eu quero minha passagem,

pois muito já sofri.

Nesta terra de trairagem,

onde amigo é miragem,

gente séria malandragem,

oh, me deixem sair daqui.

Depois de muito aplauso,

todo mundo se dispersa.

Já vai anoitecendo,

nesta cidade que não se cansa.

O orador se recolheu no seu templo,

O rapaz dividiu um banco de praça

com o mesmo senhor que lá passou o dia.

Os olhinhos infantis agora descansam,

num quarto aconchegante.

Algumas crianças ainda trabalham,

em tarefas de baixo brilho.

Carros ainda correm, carregando a mesma gente miúda.

Gente estranha, que convive, não vive, sobrevive.

Alguns cachorros passeiam pela calçada,

com suas joias e roupas caras.

Desviando de mendigos e moleques de rua.

São as mesmas tarefas, atos.

E eu fico aqui, recolhido com meus amigos:

os ratos.