PASSA-SE O PONTO

Pelo meu retrovisor todos os "pontos passam-se".

Muitos transpassam-se!

E todos os dias eu lhes perpasso.

Um sol vence a madrugada e tenta subir outra vez.

Tenta lindamente...enquanto os

tempos passam a correr pelos tantos pontos da avenida.

Avenida cheia, de ônibus enlatados

e os seres atônitos nem se entreolham.

Os andróides fazem sinfonias dos nadas.

"Aluga-se" e "Vende-se" aos montes!

Os restos se escambam!

Pelo meio fio rachado mais um ônibus passa do ponto

sem parar.

Já não há espaço digno para todos.

Vi que, apressado, quase tomba no buraco

que cresce sinalizado com uma paia de palmeira seca.

Uma palmeira que desistiu porque passou.

Eu tenho sorte: sempre desvio a tempo de passar dos pontos intransponíveis.

Paro na faixa apagada: a de pedestres.

Alguém atrás se irrita por isso:"anda pra frente, ô muié!".

Digo que ando. Mas ando devagar para chorar melhor.

"Aluga-se e vende-se!" São tantos...

E vejo outro e mais outro.

Parece epidemia.

Um mosquito quebra a larva do abandono.

Comemora e passa voando pelo córrego entupido.

Microcefalia pode ser dádiva.

Passa o ponto da praça do xadrez.

O mato sobe, o lixo fede.

Um sofá é desovado na calçada.

Uma tenda sobe, vários circos também.

A droga perfuma a atmosfera.

Um rato passa pela avevida

Um cão engravatado passa desvitalizado mas late

(parece discurso de podio!)

Uma Pomba erra o passo

e se estatela sangrante no meu vidro

que passa no tempo e no lugar errados.

Soa um funk, passa um pokemon fugitivo e assustado,

Uma multidão o acompanha...

Nasce um grafite do ódio,

e uma criança passa sangrando na tela,

pelo Alepo da minha avenida de sempre.

Mais uma igreja sobe com imunidade tributária para negociar a fé.

Uma camiseta desbotada passa num peito andarilho:

"vote em mim!".

Ela acreditou...e votou.

O amor se envergonha.

Quantas bombas inaudíveis, meu Deus...

Passo esse ponto. É urgente passar.

Um açougue faz oferta de carne boa

à duvidosa carne humana passada e repassada na esquina.

Ali sempre se faz filas de todas as fomes que não passam nunca.

São muitas as fomes de tudo.

Passo pensando:Por quê?

Ainda bem que alma famélica não tem carne.

Transpasso mais um ponto ainda não passado:

Parece milagre.

Mais um homem, de fala mansa, se corrompe.

O sorveteiro, meu amigo, diariamente perpassa arrastado,octagenário.

Me acena com dificuldade. Como é dificil passar.

Passou...e nem teve tempo de

degustar do seu próprio sorvete, o melhor que vende: "sabor vida".

Vejo que descansa o folego mais que passado

sob a seringueira passando, a de folhas oxidadas pelo pó do tempo.

E eu, transpassada,

passo acreditando que cuido das passadas...

vidas presentes?

Medida de passagem paliativa:

Mesmo assim ainda cesso as febres

e sedo as dores possíveis.

Sorrio do patético de mim.

Quantas cenas resilientes, obstinadas

descascadas pelo tempo perdido na avenida

de tantos pontos esquecidos.

Quantas doenças incuráveis,

quantos escombros invisíveis, meu Deus!

"Golpe" consumado é não se conseguir passar.

Nem pelo nada.

Leio mais um "passa-se o ponto".

E mais outro.

Vende-se, aluga-se.

Só as carcaças se escambam!

Pelo amor Deus: passemos todos os pontos!

Os das sucatas dentre a fumaça preta dos escapamentos.

Não entendo como, mesmo passando, pode haver

tantos pontos a se transpassar, ainda.

Mas pelo retrovisor tudo passa mais rápido....comemoro.

Também sigo a olhar para mim

passando fixamente em sinuosa linha reta

de mesmos pontos perdidos.

Há quanto tempo passo do ponto.

Eu sempre passo do ponto.

Mesmo que seja pela poesia.

Não entendo nenhuma hora de parar.

Alguém como eu dá o sinal para descer.

Outros, desavisados,

querem subir para passar e repassar comatosos.

Coma providencial.

Quantos passam pingentes pelo golpe dos tempos perdidos pelas avenidas surreais...dos Homens.

As que nunca passam.

Leio de novo: "passa-se o ponto": mais um?, e ninguém viu?

Não pode ser coincidência: alguém, passando, versejou para mim...só pode ser.

Olho para cima, quem sabe mais um verso oculto?

Vejo ninhos abandonados, áridos e já empoeirados, sobre os galhos do Ipê roxo que se foi.

Um Ipê enorme...que se recolheu de medo.

O filhote já voou.

Também passou do ponto de passar.

Uma nuvem passa sem chover.

E eu repasso...só olhando.

Meu coração transpassa a frequência segura.

Rezo pra que ao menos a fé não passe...

Um Ipê amarelo, de passagem, tentou ficar para a rápida florada.

Não conseguiu.

Dessa vez nem fez tapetes na calçada!

Desistiu? Talvez.

Como é cansativo fazer verso invisível.

Soa um míssel lá longe.

Um barco afunda no oceano.

Alguém pede socorro.

E um Atelta vence a si mesmo:vida no podio. Até que enfim!

Passo por

uma velha Sibipiruna que já espoca ao céu

suas frágeis flores amarelas:

Abre-se um janela à primavera.

"Que não seja mais uma primavera árabe"-penso comigo.

A seiva insiste. Transpassa o impossível.

Raíz cansada a desbravar o solo minado.

Que tudo passe...menos a vida.

A esperança tenta ficar.

Passa-se o último ponto: mais um.

Até ela, perpassada, luta para acreditar.