O PODER DO PAI

Sabes como nasci, debaixo de uma mangueira,

Oferenda de deuses inquietos de um passado distante,

Em instante presente ao mundo que já orbitava

Em celeste curso e futura colisão com o rei do hidrogênio;

Me jogaste ao mundo como cristão às feras...

De sapato em sapato fui gato e rato,

Rei e simples artefato de troca em artes religiosas;

Em silêncio caminhei pelo mundo e a arte veio me visitar.

Desenhei e cantei e escrevi e compus e murmurei versos,

E ainda assim, lançado à mais mundos e mais abismos,

Descobri em mim a força que rege astros e estrelas.

Em dois pilares me apoei, música e poesia;

Cantei a cantiga dos enforcados e os salvei.

Memória e gesto que me salvaram de naufrágios,

Seduções às quais escapei por saber reger o senso,

Por criar alma sinuosa que caminhasse dentro do labirinto,

E assim ainda hoje me sinto.

Fui perguntado da vida ao meu redor e das minhas crenças,

Das minhas desavenças com Deus e com os seus;

Os olhos se vingaram do escuro e brilharam

Na noite imensa deste país, desta casa assombrada,

Onde vi os meus e os seus caírem aos pés de demônios...

Côrtes de homens de verde assustando o nascimento de uma raça,

Sangue escorrendo pelas fechaduras arrombadas e feridas,

O rosto estampado na foto de primeira página, a denúncia,

A mecânica cumprindo seu ritual de fórceps e estilete,

A mancha lançando seus braços sobre a geografia delimitada.

Levantei jornais e homens dormiam o sono dos injustos,

Abri janelas e vi olhos percorrendo corredores,

Flores ensanguentadas chorando sobre seus vasos a terra perdida;

Lençóis puros, de olhos esbugalhados, menstruando antes do tempo.

Caminhei entre selvas de perfumes e tapumes sedosos,

Cri e descri e vi a porta com o número 666,

Vi homens escondidos nos corredores do palácio, traficando,

Homens em ternos bem cortados presidindo senados e assembléias,

O nascimento do choro no olho daquele faminto à porta do fim.

Lá, onde a lei perpetua seus seguidores, te vi, pai,

Imenso aos pequenos que te rodeavam, miúdos e famintos;

Ouvi teu riso de hiena sangrenta, tua bebedeira à Baco,

Ouvi teu povo gritar por pão enquanto tu viajavas pelo mundo

Repetindo versos que não escrevera e que nunca escreverá.

A canção da miséria ja entoava seu coro e tu te mijavas de rir,

Tu cagavas ao mundo que um dia foi teu, tua origem abandonada

Por um nome que quisera escrever à força sobre a carne de um país.

Hoje, mais velho e mais ave, vôo sobre teus mortos e tuas covas

Abandonadas à beira da estrada e nunca mais falei contigo.

Sei que a história nào beijará teus pés e nem haverá fama

Que te dê uma parte enquanto rires dos que emagrecem n'alma.

Por crer, sei que haverá um mundo em que não habitarás,

Serás apenas quadro na parede engolida pelo tempo,

Serás um cisco no estômago do vento que a tudo leva.

E, caos, rezarei uma canção que te leve ao lugar de onde

Nunca deverias ter saído, cálice fechado sem nada dentro,

Para que aprendas o que nunca saberás,

Ser pai, e como pai aprender a ser filho e filho de si,

E ser o futuro que virá por sobre o horizonte

Que à muitos morreram e que à outros

Acaba de nascer.