MARCHA SOMBRIA

A gente não tinha como saber

Que o século seria tão mau

A ponto de nos engolir vivos

E que esse ódio que fazemos de escudo

Se tornaria coisa banal

Como também não havia como saber

Que os homens tanto

matariam em nome de Deus

Lançariam na fogueira quem pensa

diferente de sua época

Por certo nunca passou pela nossa cabeça

que bandeiras iriam valer mais

que nossas humanidades

Podem nos acusar de tudo

de termos sidos insanos

de compactuar com os que tramam

mas não venham dizer que sabíamos

que o resultado de tanta guerra e horror

seria mais horror e mais guerra

de fato estávamos já duros

ensimesmados em nossas crenças

por certo não antentamos

ao dia em que paramos de pensar

não percebemos quando nos transformamos

em um rebanho de tolos gentis

que defendem barbaridades

em nome de doces mentiras

isso deve ter se dado aos poucos, presumo

porque acordamos e o tempo

já nos corroía a alma

como um câncer oculto

a justiça havia se tornado piegas

queríamos exterminar nossas sombras

em nome de uma possível moral que inventamos

desenterramos fantasmas para justificar

nossa sede de vingança

Claro, fomos pisados tantas vezes

que acabamos por achar certo pisar também

afinal, isso não vem a ser justiça?

Mesmo quando reparamos

Que estávamos todos errados

Não quisemos dar o braço a torcer

Seguimos em nossa teimosia cruel

Direcionando nossa ira às minorias

Combatendo o que nossos ancestrais

Tão ardentemente combatiam

Nas inquisições, nas ditaduras

Com efeito pensamos que era por aí

Que iríamos proteger o cidadão de bem

(esse estereótipo que modelamos)

E reconstruir nossa pátria amada

Hoje vemos como também fomos enganados

Nós que nunca tivemos uma boa cultura

Mas que a cada livro queimado

Era como se fosse um enredo vivido

Saboreamos o silêncio daqueles que sempre gritavam

Comemoramos como um deus torturadores

Enaltecemos a vitória da censura

Essas coisas insanamente nos alimentavam

Agora não resta mais nada

Pois chegamos ao ápice da aspereza

Nosso asco ainda é grande, decerto

Mas é corpo já é cansado

E a dor na consciência um peso novo

Ainda assim avançamos de qualquer forma

Nessa marcha sombria que nunca fez sentido.