CANÇÃO DO ESTADO
Não teve tempo para chorar
O menino que brincava, João Pedro
E não há como lhe explicar
Que é o Estado que lhe mata de medo
Todo dia são eles, armados
Que desatam a fúria mortífera
contra o direito
Todo dia são eles, fardados
Que transformam em sangue
O ledo engano
Não teve tempo para se despedir
O menino que brincava, João Pedro
Sem o colo da mãe ou vigília do pai
O governador entregou-lhe mais cedo
a canção atroz do Estado
Pois todo dia são eles, disfarçados
Os que arrombam casas em tiroteio
Todo dia são eles, amaldiçoados
Que tiram a vida de jovens
Com balas ao acaso num desvario
Negros, adolescentes olhos em espanto
Vão, como o menino ferido, João Pedro
Parar nos números frios do desencanto
Nas páginas escuras do falaz jornal
Que nunca conta
Que todos os dias, bem armados
Eles retiram o sol e sonhos das ruas
Que todo dia, farsescos protetores
Arrastam a vida para os sujos becos
E confirmam a exclusão fatal
Negros, jovens, como que num sorteio
Tem o azar da mão assassina, João Pedro
Que lhe anulam desde a ausência do Estado
E reduz tudo ao canto diário do medo
Todo dia são eles, soldados
Que aliciam o direito de viver
das crianças
Todo dia são eles, violentos
Que redimem a elite, puros milicianos
Com várias mortes em seus planos
Não teve tempo de contar, João Pedro
Que os primos queriam apenas brincar
Não tinham pela casa nenhum descuido
Queriam apenas na quarentena relaxar
Mas como todo dia, vêm súbitos e atiram
Em qualquer pouca vida da periferia
E se é jovem, negro, a sonhar um futuro
Têm-nos sob mira, numa imoral pontaria!