Vox populi, vox bestia (ou senso comum)
A boca que me escarra é a mesma que me beija
E me diz coisas sujas e feias
Também diz que me quer e diz que me deseja
Me quer pra ontem, pra hoje, me quer disponível para quando ela queira
E o rancor de si sobra, sobeja
E a boca fria e vermelha baba enquanto beija
Posso sentir o gosto de cigarro e cerveja
Os resquícios da última noite de sexta
Mas atenção, a boca, agora, vai falar
Atentem à desigualdade, aos sofrimentos que ela enseja
É boca pálida que agora fala, cheia de ódio e soberba
— Pisem no pescoço e vejam como o olho brilha, dardeja
— Não me importo, não me cobro, sou um homem e não uma freira
— E, veja, não é indiferença não, é só que essa não é minha peleja
A boca cospe enquanto fala, franzi, freme, fica rota
Roga pragas de canto de boca
Com voz rouca e trêmula
A cara envolva numa flâmula (toda boca se faz cara) de cores pestilentas
Verde putrefato; amarelo pus; azul cianótico
E das cabeças ocas (toda boca se faz cara e se faz cabeça, sim toda) sai a sentença :
— Matem sem pena; sem julgamento e sem defesa; queimem depois o corpo, é só um morto; é mais um “outro”. Não faz diferença
“Bandido bom é bandido morto”, é o que diz o pensamento tosco de vieses tortos , ideologias senis
Um rio de água parada, fétida, moto sem continuum
E aí de mim, aí de mim que sinto
Que beijei as tais bocas e hoje só tenho ranço
Que vejo e sinto tanto
O torpor do veneno, o cheiro fétido, o amargor do absinto
E que me perco nos entrecaminhos
E perco o fio do pensamento na encruzilhada, nos cimos
E até esqueço qual o nome do meu vizinho
E tenho que desviar de balas, bandalhas e das tretas
E preciso desviar dos corpos, dos corvos, dos córregos transbordando
E veja:são tantos corpos desovados, desossados e não tem ninguém velando
É isso aqui tá parecendo um campeonato de batalha depois de um combate sangrento
Mas eu não tenho armas, não tenho nem sandalhas pra atravessar o campo
Aí de mim, aí de nós que um dia demos voz à boca
Que reificamos a besta
A voz do povo é a voz da besta