A orquestra canibal

Na estação de trem caminham os homens confinados sob a fragilidade humana; no subterrâneo de si, aglomeram angústias e vão retendo o ar inóspito até que se evapore numa massa fria.

De dentro deles algo pútrido exala;

é o cheiro áspero dos dramas encarcerados na orla das coisas retidas no tempo, quiçá os fetos dos sonhos apodrecidos e decompostos no aborto da exposição diária.

Caso uma tosse escapa-lhes do ventre, o segredo mais defasado também os escapa - medo - substância escura que inflama na incerteza.

Há tempos estamos avulsos ao mundo e no ar pairam partículas infecciosas de tristeza; ó terror, os homens te devoram por dentro, devoram uns aos outros e fazem-se de ração esmigalhada pelo tempo.

E quem sabe ao chegar em casa te dispensem de morrer, seja de fome, contagio ou privando-te da vasta cultura que desprenderia a massa humana que em ti já esfria. Mas eles nunca o fazem, ó pequena engrenagem de carne humana.

Próximo a plataforma um violinista

inicia tua orquestra macabra; teus olhos fundos evidenciam que a arte no Brasil não dorme, e a sinfonia em seu estômago ressalta que ela não come.

Que ventre produzes tão feio parto musical? Perguntam os homens encarcerados dentro de si.

A marcha fúnebre cristaliza a sensação mais imaculada e soa sórdida e dolorosa aos ouvidos dos que a escutam.

A canção entranha-se na alma,

A canção escorre e alimenta-se dos seres humanos, e eles devoram as próprias angústias enquanto escutam o eco que outrora escondia-se dentro de cada um.

Mas são eles que digerem a música ou a música os digere ao compreende-los e refaze-los etéreos e sóbrios no ar?

A música prova-se tão humana e feita da mesma substância que nos compõe, ela engole nossas angústias e misérias e faz-se como orquestra funesta no ar.

A música prova-se ser a única capaz de penetrar a doença que deixou todos claustrofóbicos e a arranhar a epiderme da loucura.

Agora todos sentem a fome do artista transposta no ar; agora todos elucidam o próprio cárcere da doença que engole os pulmões.

Agora todos também são engolidos

pelo organismo humano; todos sofrem a vertigem de sugar-se para a zona perdida dentro de si. Céus, as horas passaram a levar-nos depressa, agora a música devora a carne do tempo.

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Letícia Sales
Enviado por Letícia Sales em 25/05/2021
Reeditado em 20/07/2023
Código do texto: T7263490
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