NO TRANSBORDO DO GADO

Amanhece e vejo a tela.

Transbordo no transbordo.

Gado também tem alma.

É difícil se transbordar dos caminhos sem caminhos.

Então,

Transbordo na poesia transbordante.

Sempre sedenta de versos que não vêm...

Na dor transbordante de sentir e entender

Mujo um ruído inteligível e inaudível para ninguém ouvir.

Não há trilhos.

O caminho é só de dormentes oxidados.

Às vezes, uma flor brota, como se arremetesse do impossível.

Desligaram as luzes e falta energia...

Mas trem do tempo não para nunca.

Segue por obrigação.

Sou gado e só sei que preciso chegar.

Onde? O lugar não importa!

Chegar...

Só pra cumprir horário no meu transbordar de espanto.

Não há pasto; não há grama.

Só há as urnas carreteiras para os nadas...

A chuva só soterra a terra e as vidas.

Ouço o berrante que ninguém ouve.

Ordem é ordem. Obedeço.

Há berro transbordante a reverberar dentro de mim.

Porque aprendi a só isso...doer sem berrar alto.

Salto do trem das horas...

Da carreta boiadeira baixa e parada

Para o piso de pedra de sempre.

Só há urnas carreteiras para os nadas!

Não há maquinista, não há destino.

Há apenas um mecanismo parado

Ilusionista das chegadas que não chegam.

Velhacaria que serve a poucos, a se servir de muitos

Ante a toda demais subserviência reprimida, dolorida.

Gado transbordante que sonha ser transbordado

Para matar todas as fomes pungentes.

Gado muje como nas dores das gentes.

Só urnas carreteiras que transbordam os nadas

para os nadas.

Só mais uma Maria fumaça...no museu da ferrovia que foi indo

sem levar a lugar algum.

Como tantas outras Marias já idas e idas

Sentidas sem sentidos, ressentidas...

Como café repassado

Que um dia, fervidas nos vapores das dores

Apenas transbordaram nas xícaras vazias

De todas as possibilidades que jamais degustaram.

E mais um berrante soa alto...transbordo no meu transbordo.

Também sou gado que transborda.

Para que ao menos a poesia prossiga no seu comboio.

Sempre transbordante...

Como somente a ela lhe é permitida a liberdade:

A de, legitimamente, se poder ser.

Nota da autora: poesia que me surgiu ao ver uma reportagem, endereçada aos que cuidam "dos nossos trilhos".