Há 70 anos... Em Lisboa

Fernando Pessoa acabou de morrer, hoje, 30 de Novembro de 1935, no Hospital de S. Luís dos Franceses, onde estava internado com uma cólica hepática, causada pelo consumo excessivo de álcool, quiçá de mau bagaço. Uma década após "sua mãe, o menino dela" foi-se deveras. Aos 47 anos, finou-se em solidão extrema aquele que, dentre as brumas da memória, ressuscita agora todos os dias ao lado de Camões, pedindo meças ao vate-mor da língua portuguesa. Hoje?... Sim, hoje, há exactamente 70 anos.

Às primeiras horas da manhã, no canal 2 da televisão portuguesa, vi e ouvi um grupelhozinho, presumidos "especialistas" na "matéria" pessoana, assaz preocupadíssimo com o pendor sexual do Fernando. Um deles, sempre que se exprimia, acompanhava a vocabulação de uns "gestos deliciosos", como se estivesse, ainda que sentado, voando na ponta de uma varinha mágica. A moderadora, em pose de quem estaria alapada no trono das letras, debitava as questões sincopadamente, com voz de experimentadíssimo homem. Sua boca, do tipo de desentupidor de bancas de cozinha, pareceu-me, pelo jeitinho de mexer-se, algo exímia na arte de bem tocar gaita de foles e trombone, ao mesmo tempo.

Mas, adiante, Pessoa hoje faz anos - daqueles anos que convêm à sociedade consumista - e, em dádiva rebuscada no céu dos malditos gratuítos - jamais perdoarei os abutres snobs - ocorre-me transcrever aqui o fumo da sua...

TABACARIA

Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada...

À parte isso, tenho em mim

todos os sonhos do mundo.

Estou hoje vencido,

como se soubesse a verdade.

Estou hoje lúcido,

como se estivesse para morrer...

Falhei em tudo.

Como não fiz propósito nenhum,

talvez tudo fosse nada.

Que sei eu do que serei,

eu que não sei o que sou?

Ser o que penso?

Mas penso tanta coisa!

E há tantos que pensam ser a mesma coisa

que não pode haver tantos!

Génio?

Neste momento

Cem mil cérebros se concebem em sonho

génios como eu,

E a história não marcará, quem sabe?, nem um...

O mundo é para quem nasce

para o conquistar

E não para quem sonha que pode conquistá-lo,

ainda que tenha razão.

Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.

Tenho apertado ao peito hipotético

mais humanidades do que Cristo,

Tenho feito filosofias em segredo

que nenhum Kant escreveu.

Mas sou, e talvez serei sempre,

o da mansarda,

Ainda que não more nela;

Serei sempre o que não nasceu para isso;

Serei sempre só o que tinha qualidades;

Serei sempre o que esperou que lhe abrissem

a porta ao pé de uma parede sem porta,

E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,

E ouviu a voz de Deus num poço tapado.

Crer em mim? Não, nem em nada.

Vivi, estudei, amei e até cri,

E hoje não há mendigo que eu não inveje

só por não ser eu.

Fiz de mim o que não soube

E o que podia fazer de mim não o fiz.

O dominó que vesti era errado.

Conheceram-me logo por quem não era

e não desmenti, e perdi-me.

Quando quis tirar a máscara,

Estava pegada à cara.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira

Talvez fosse feliz.)

Visto isto, levanto-me da cadeira.

Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria

metendo troco na algibeira das calças?).

Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.

(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)

Como por um instinto divino

o Esteves voltou-se e viu-me.

Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!,

e o universo

Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança,

e o Dono da Tabacaria sorriu.

Álvaro de Campos, 15-1-1928

Nando, gostaria de dirigir-te uma amena palavrinha que lesses ou pelo menos ouvisses, mas isso é daquelas coisas que nenhuma alma grande logrará: por favor, não descanses em paz, tanto mais agora que a paz não serve para coisa alguma...

António Torre da Guia
Enviado por António Torre da Guia em 30/11/2005
Código do texto: T79189