Um poema meio do além...

“Se a íntima angústia de cada um se lesse escrita na cara, muitos dos que inspiram inveja só fariam pena.” (Metastásio, Pietro)

Quando vir a noite, um tanto perdido sem nada a fazer,

quero um pássaro noturno a sobrevoar a minha janela:

feito uma alma penada, querendo reza, pedindo prece.

Quero assim: igual alguém batendo, feito um clamor,

e, na mudez da alta noite, me fingindo de outro morto,

aqui dentro, no conforto das sombras, asilado da vida!

Qual poeta, outro louco, cantaria em verso ou prosa a

visita de uma alma já sem seu corpo na própria porta?

Quem adoraria outro ser na sombra fosca e na poesia

eternizaria esta visita? - Eu, também vindo de outras

épocas, outros campos e de outros santos, além disso,

meio eterno, de outro inverno; sei, nos daremos bem!

Não pensem que vou tremer com seu grasnido, nem

que aclararei o escuro que eu adoro e que sou parte;

Sou da noite, também tenho a alma daquele pássaro,

que com insistência de um louco fica a observar-me,

e, parado e contemplativo passo a ser parte do que

para outros seria desdita, mas para mim tão natural!

Nem sei bem o padre-nosso ou uma salve rainha, nem

sei também se quero rezar; quem sabe, orando aquele

pássaro voando, sumiria e me restaria apenas o vazio.

Quero-o implorando, igual aos feios de face rogando

beleza; de ouvidos moucos finjo nem lhe dar atenção.

Coitado! É mesmo uma alma penada, ainda penando!

Nas trevas da noite o que era para ser assustador,

deixa-me arrebatado. Assim o miserável pássaro

terá que encontrar noutra casa, outro ser que lhe

atenda a penúria de oração; porque, eu, na minha

condição de louco, quero ser é seu parceiro, quero,

noutra noite, ser ave noturna a bicar nas vidraças!

Nem que seja para ser ignorado, que outro me deixe

perdido a bater asas em vão, mas que seja uma alma

competente e na mais pesada das noites que o vento

maldito repita ao longe meus ais, e nada me distraia

da minha sina de visitante maldito, nem que seja um

grito, nas noites, almejo tirar dos insones incrédulos...

Talvez esta psicopatia de poeta, seja a solidão e a dor

e eu deva ser expiatório, tenha de ser tolerante a mais

bizarra das cenas e tenha que ser parte desta magnífica

feiura noturna que me encanta, e este rejeitado pássaro

sejam parte deste enredo imperfeito que me prende todo;

Talvez, eu me consuma nesta delinquência deslumbrada!

Talvez este pássaro seja os descartados pela perfeição

mundana, talvez se debruce no parapeito e se entregue

aos castigos pelos seus malfazejos, quem sabe a utopia

da madrugada não me arranque o fôlego ou me roube as

palavras, quem sabe este poema já não tenha sido escrito

e outro no amanhã o reconte, ainda que de forma inédita!

IVAN CORRÊA
Enviado por IVAN CORRÊA em 30/01/2016
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