Manifesto mitológico: Medusa

Eis a criatura horrenda que vos fala:

Isolei-me de todos os panteões ideológicos, após profanar o templo da injustiça com a minha dor.

Mas pudera eu omitir as chagas que inflamam a terra ou adorar as tiranias que professam a guerra?

Meu pesar ofendeu as frigidas liturgias no templo da iniquidade, pois despiu a dor do mundo de forma sacra.

Vaguei com o castigo do exílio, e acumulei a esmo, o fardo de refletir a face do abismo dentro de mim.

Aqueles que olharam em meus olhos foram petrificados, pois enxergaram as próprias sombras ou testemunharam a minha imersão na luz, ora tão incompreendida e desacreditada.

E os que fitaram meu olhar perdido, talvez tenham se apaixonado pelo apelo sensível que penetra os movimentos do mundo;

De certo se assustaram com a minha forma instinta entre formas.

Mas todos tiveram o mesmo destino: eternizaram-se em uma só expressão.

Portanto aviso-lhe de antemão:

Meus olhos são buracos negros;

Então permita-me puxar-te do canto donde jaz inerte, e mostrar-te o que adormece nas várzeas sombras do teu ínfimo universo.

Muitos desejaram provar do meu sangue criativo, ou suicidar-se com o veneno que circulara nele.

Ora, a sensibilidade é dúbia e não serve apenas para afagar a vida.

O paradoxo que me habita és mais forte do que imaginas;

O núcleo sensível que torna-me implacável é o mesmo que transborda-me como prenúncio de um colapso inevitável.

Na gravidade em que orbita a minha solidão; nem mesmo a luz escapa,

Até as estrelas que passam desavisadas acabam dilaceradas pela força da introspecção.

Por muito fui a ameaça que petrificara cérebros de pensamentos atrofiados.

E de tanto esganarem a minha existência, tornei-me ríspida e alcei fortalezas em mim.

Tornei-me a górgona dos injustiçados e fiz-me escória

por puro instinto de defesa.

Do meu crânio cresceu a astúcia das serpentes que se arrastam no ébano; e como espinhas dorsais, elas deram sustancia à minha renuncia.

Sou a sacerdotisa da liberdade;

E proclamo: Profanarei tua ignorância enquanto meus olhos mostram as profundezas enfermas do mundo.

Verás a fome nua sob a fronte da discriminação, e fitara um retrato indefeso sem a névoa da piedade.

Verás o fascismo e o negacionismo,

junto ao panteão de outras mentiras

ofertadas no culto da morte.

E eu já não suporto traduzir o mundo com tamanha intensidade e carregar em meu cérebro o peso da liberdade; ela que é tão antagônica, decapitou-me.

Por fim, a chama da vida em mim feneceu; todavia, das minhas entranhas cadavéricas, a potência criativa expeliu meu único legado: as ideias.

Todas se aglutinaram na forma de um cavalo alado indomável.

As ideias correm ofuscando as incógnitas;

Seus cascos batem nos neurônios, amassando os vazios da terra;

dando sonoridade ao eterno silêncio duma cripta.

A infinidade é demais, mas a imortalidade há-de ser suficiente.

Que calem minha vida humana, ora tão frágil e efêmera.

Pois jamais hão de calar toda uma existência de formas expelidas.

Tão pouco estancar o meu sangue

que agora afoga os pulmões do silêncio.

Letícia Sales
Enviado por Letícia Sales em 07/12/2020
Reeditado em 21/05/2023
Código do texto: T7129438
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