BULICHO (I - VII)

BULICHO I

Nos lugarejos antigos o bulicho

era o lugar de encontro dos peões,

faziam caderneta, em ilusões

que o pagamento seria menos micho.

Os pilas escorriam num esguicho

muito fininho. Na safra é que os patrões

pagavam uns pingados, produções

em que passavam pra trás o pobre bicho.

E quando iam se acertar com o bulicheiro

nunca que a plata dava... No contrário,

dever ficavam para mais de um ano...

Só tinha uns que pagavam de changueiro,

nos domingos e feriados, que o salário

nem chegava para a canha do aragano...

BULICHO II

O bulicheiro fazia

as conta em papel de embrulho:

para tudo lhe servia,

até mesmo sarrabulho!...

Quando o mascate trazia

mercadoria de entulho,

ele as contas conferia,

para não ficar no esbulho!...

Se o mascate punha antolhos:

"Oigale tchê, tu é uma peste!"

reclamando feito um potro,

apontava para os olhos:

"É porque este é irmão deste

e primo daquele outro!..."

BULICHO III

O bulicheiro e o mascate eram amigos

de longa data... Pelas carreteiras

andava um, portando garrucheiras,

passando privações e mil perigos;

o outro se quedava nos antigos

direitos dessas vendas estancieiras,

erguidas desde sempre pelas beiras

das estradas vicinais, nesses ambigos

lugares que ainda eram duas estâncias,

que também a uma e outra pertenciam,

que junto às lindes sempre havia passagens;

lá se reuniam para as manigâncias

os peões e os milicos que ainda havia

pelas fronteiras, em longas fabulagens...

BULICHO IV

No seguimento do beiral da estrada

armava o bulicheiro cancha de osso

(cancha de bocha pro pessoal mais moço,

que aprendera dos gringos a jogada).

Se o fazendeiro era meio camarada,

deixava ainda fazerem mais um troço:

alevantavam o arame, abriam poço,

montavam cancha reta e a cavalhada

juntavam nos domingos pras carreira;

vinha gente de longe, bem pilchada,

de aranha e de charrete. Para a aguada

iam cavalo e burro... Pela esteira

vinham os cuscos e, numa cambulhada,

chinas vestidas pra ocasião festeira...

BULICHO V

Era em feriado que corria a canha,

mas os sitiantes preferiam fazer feiras

em cada sábado. Traziam as chaleiras

que a mulher do bulicheiro, sem ter manha

aquecia no fogão. Compravam banha,

charque e farelo, farinha e umas porqueiras:

Pindorama pro cabelo das chineiras,

Amor Gaúcho, que rapaz apanha...

E maior percisão, agulha e linha,

ferramentas, fazenda, até bombacha:

os aba-largas pro calor do sol.

O que quisessem no bulicho tinha,

espora, poncho, guaiaca, bota, faixa,

cal e cimento, tinta e até urinol!...

BULICHO VI

E o que teria sido do Rio Grande,

sem esses bulicheiros dessombrados,

em seu viver consoante Deus o mande,

por estes vastos pampas descampados...?

Por onde a tosca aflora, se cavados

por mais de meio metro, no desbande

dos rebanhos, nesses tempos invernados,

nas canhadas vazias dessa lande...

Essa gente tão simples e constante,

que dava provisões aos maragatos,

provisionava também os pica-paus,

buscando a paz que seu comércio adiante,

mas sem que pobres andassem sem sapatos,

nem lhes falhasse a bóia em dias maus!...

BULICHO VII

Pois era assim, na vastidão do pago,

esse entreposto de provimentação,

na venda da espingarda até o colchão,

pra cuidar do vizinho em cada estrago.

O bulicheiro não era nenhum mago,

mas não ficava rico em sua função:

bancava o duro, porém bom coração

demonstrava ao andejo em dia aziago.

Hoje rarearam os bulichos de campanha:

vem à cidade o peão, sempre que ganha,

do bulicheiro até esqueceu o nome,

que suas compras anotava em caderneta

mas a missão cumpria mais secreta

de não deixar o povo passar fome!...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 22/10/2008
Código do texto: T1242118
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