GERMÂNICOS VII & MAIS
GERMÂNICOS V
Depois, fundou-se aqui universidade,
que nas colônias ainda não havia:
e os jovens alemães, piá e guria,
vieram a Bagé para estudar.
Outros mais velhos, escolheram a cidade
para serem professores; serventia
encontraram por aqui, em outra via,
se aquerenciaram, vieram pra ficar.
Mais tarde foi o arroz, porque os trigais
nunca duraram muito, os gafanhotos
vieram da Argentina; o clima e a terra
serviam bem melhor para arrozais.
Fizeram as barragens, mais devotos
de produzir comida que ir à guerra...
GERMÂNICOS VI
Os "alemães", naturalmente, eram
de muitos povos, suecos, poloneses,
austríacos e tchecos, holandeses,
até da Rússia houve alguns que nos vieram.
Os italianos também aqui trouxeram
cabelos claros; judeus e finlandeses;
havia louros até sírio-libaneses,
que chamavam de turcos; mas fizeram
exceção para os cabelos de outra cor...
E houve padres que deixaram da batina
e freiras que fugiram dos conventos,
atraídos por dinheiro ou por amor.
Sua progênie partilha a mesma sina:
todos gaúchos em alma e pensamento.
GERMÂNICOS VII
Agora, já se vêem por toda parte:
milicos e estudantes, professores,
advogados, dentistas ou doutores,
pobres ou ricos, como Deus os farte.
A mistura se fez mais por casamento:
cabelos pretos com nomes alemães;
cabelos claros, iguais aos de suas mães,
mas com nomes pêlo-duro em documento.
Passou o tempo do preconceito mouro
que sofriam, de espanhol e português,
que a maioria demonstrou não ter razão,
pois qualquer um que tem cabelo louro,
seja italiano, polaco ou libanês,
passou a ser chamado de "alemão"!...
BASSORA-BASRA
Contemplo a noite em áspero veludo
no terciopelo fino dos solares:
proclamo da almenara meus cantares
e ao ver os almocreves, não me iludo.
A torre de atalaia é meu escudo,
broquel fendido em gestos de alamares,
brandenburgos puídos de avatares,
solitário prazer de aguazil mudo,
a trepidar no alcázar da quimera,
de heróicos deveres quilombolas,
alhambra morta no furtar dos anos...
Cada estrela, uma vulcânica cratera,
de vinho e malva, cerâmicas e estolas,
nas faces ancestrais dos muçulmanos...
ENQUANTO EU ERRO, EU VIVO
Sempre haverá uma rede à minha espera:
um alçapé a me fazer tocaia,
a sentinela morta na atalaia,
os esculcas do sonho e da quimera.
Uma armadilha haverá que reverbera
em olhos verdes de serena vaia,
égua no cio que mal contém a baia,
em relinchos lascivos deblatera...
Um fosso indisfarçado em que me lanço,
no desejo febril dessa aventura,
que só transcorre da mente no escaninho.
Trepidante de ardor, em sonho manso,
no ascético sabor dessa amargura,
contida em azedume de azevinho...
O SEGREDO DA VIDA
Quando o Senhor, lá do céus, em segredo,
contempla Seus filhos em dom singular,
bem pode ver, em Sua mente divina
o que pode, em amor, outorgar...
pois nossos dias, repletos de dor,
são prelúdio de bênção sem par,
fruindo a promessa de Deus,
pois Jesus, em Sua cruz, veio nos resgatar.
Os homens temem da vida o segredo,
pois julgam seus dias repletos de mal:
nem podem ver, que à distância, rutila
de Deus o excelso fanal;
do campo os lírios não tecem, não fiam,
mas nem Salomão, rei sem par,
vestiu-se jamais com igual resplendor
para Deus, em Seu templo, louvar!
E ao contemplardes as aves do céu,
em seus ninhos de seda e ouropéis,
lembrai-vos de que estas não ceifam,
mas Deus as protege em invernos cruéis!
Assim dos dias passados na vida,
ou que não trouxeram sua carga fatal,
guardai silêncio, pois basta ao presente
o fantasma de seu próprio mal!..
CORIZA DIVINA
Enquanto eu erro, eu vivo, neste épico
despojar de mim mesmo na aventura;
busco o futuro enquanto a vida dura,
suborno a morte apenas, em estético
acesso de abandono a todo o eclético,
nesse epiléptico ardil de compostura;
arrasto o rosto até a completa desfigura.
no muco e linfa do coágulo do ético;
da lua as gotas me escorrem pela espinha,
do sol os raios estupram-me o umbigo
e o vento me atravessa como espuma,
tal como o amor, que só às vezes se avizinha,
escorre em sangue no crisol de tal perigo,
do nariz de uma deusa em meio à bruma.
BORRASCA
Dizem que o vento é triste, mas não sinto
nem na brisa suave ou na rajada
violenta qualquer coisa que chamada
possa ser de tristeza; o que pressinto
nesse vento é uma fúria assustadora,
por não poder ser mais que movimento:
não raiva contra nós, mas sentimento
que não materializa a sedutora
farsa inútil por tornar-se material,
pois não passa de impulso natural,
transmitido às partículas do ar
e nem pode fazer-se espiritual,
pois as moléculas são poeira de metal
impulsionadas nos lábios do luar.
TRANSMOGRIFICAÇÃO
Com freqüência, eu pressinto que passei
de um mundo para outro: é tudo igual,
mas diferente do mundo natural
e inabstrato em que antes habitei:
é como se este mundo em que morei,
durante o sono, de forma surreal,
tivesse sido transferido, qual
quando chave ou botão eu apertei,
na onírica região dos falsos zelos;
ou se cruzasse, andando pelas ruas,
qualquer portal de vezo permanente,
em que se transmutassem os desvelos
de tantas coisas que contemplo... nuas:
que é tudo igual -- e tudo diferente!...
TRANSMOGRIFICAÇÃO II
Vejo então que em meu corpo algo mudou,
sinto que emagreci ou que engordei
da noite para o dia; ou que acordei
impante de energia -- ou se esgotou
todo o vigor que tinha ao anoitecer;
às vezes, a impressão é bem mais vaga,
eu sou eu mesmo, é o mundo que se alaga
em manto cinza de novo vir-a-ser,
que me enche de espanto e me fascina:
como se tudo se encaixasse de repente
e antigos sonhos viessem me abraçar...
noutro pendor o pêndulo se inclina
e tudo se desmancha indiferente,
em novo dia que tenho de enfrentar...
A CEIA SEM CARDEAIS
Minha casa tem duas vistas, para o leste
e para o oeste:
às vezes chove a oeste e o sol o leste reveste;
às vezes chove no leste e no oeste o sol investe,
pois a casa tem duas vistas, para oeste
e para o leste.
Minha casa tem paredes: para o sul
é mais agreste:
para o sul é o cemitério,
para as vítimas da peste,
que muitos chamam de vida o final tão inconteste,
que é o cemitério da vida, quando a vida se desveste.
Minha casa tem paredes, que também
dão para o norte,
para o centro da cidade, onde a vida espanta a morte,
para os bancos e o comércio, onde a morte espanta a sorte.
Quando atravesso as paredes,
eu caminho para o norte:
as costas dou à necrópole, numa burla dessa morte,
que me aguarda lá no sul...
por melhor
que seja a sorte.
BULICHO I
Nos lugarejos antigos o bulicho
era o lugar de encontro dos peões,
faziam caderneta, em ilusões
que o pagamento seria menos micho.
Os pilas escorriam num esguicho
muito fininho. Na safra é que os patrões
pagavam uns pingados, produções
em que passavam pra trás o pobre bicho.
E quando iam se acertar com o bulicheiro
nunca que a plata dava... No contrário,
dever ficavam para mais de um ano...
Só tinha uns que pagavam de changueiro,
nos domingos e feriados, que o salário
nem chegava para a canha do aragano...