Prece de um Cavalo Pantaneiro a um Dono Meio Sangue Guaikurú.
Ao meu dono, amigo e senhor,
ofereço a minha oração:
Me dê comida boa e cuide de mim,
Me banhe sempre que possível
Não me deixe passar sede
Quando a lida diária terminar,
Me dê algumas espigas de milho debulhadas
ou raízes de mandioca
Uma bolsa de folha de bocaiúva
ou um feixe de capim.
Um coberto de bacuri ou carandá
para descansar em conforto
Nos longos dias de chuva.
Um potreiro sombreado e bom de grama,
Um embornal com milho nos domingos.
E se me colocar na soga para gramear,
que o maneador de couro seja longo e macio,
para , caso me enrole, não me machucar
cortando ou ferindo o machinho .
Fale comigo sempre em tom sereno ,
Sua voz significa para mim,
O mesmo que o toque das rédeas.
Me afague, me alise, me escove às vezes,
Para que possa servir com alegria
E aprenda a lhe respeitar e amar.
Cuide de minhas orelhas contra a infestação de carrapatos
Para que não fique troncho
De meus ferimentos contra as bicheiras
Mantenha-me longe das mutucas
E dos morcegos, sempre que possível.
Pois as primeiras disseminam a anemia infecciosa eqüina
E os segundos a raiva incuravél...
Não maltrate minha boca com o freio,
Não me faça subir um morro ou cerro correndo.
Não coloque peso acima de minhas forças.
Nem aperte demais a chincha de meu arreio.
Não use esporas de pontas afiadas.
Nem baixeiros sujos, com espinhos.
Não lace rês cujo tamanho e força eu possa não agüentar.
Não me faça andar de cabeça demasiado erguida,
De modo que eu não possa ver o chão.
Não me faça arrastar pesos a grandes distâncias.
Não me use como escudo contra reses bravias
Não dê meu flanco para animais de guampas
Não me faça atravessar rios ou corixos arreado
Sem antes amarrar os estribos e tirar-me o freio.
Não me faça correr sem precisão em locais esburacados
Cuide das tocas de tatu, formigueiros e cupinzeiros mortos.
Desvie-me do caraguatá, japecanga, carandá e espinho agulha...
Jamais me solte em invernada com bagual ou “ cuiudo”de manada
Pois aquele poderá me ver como ameaça e defenderá seu território
Me atacando com manotaços, coices e mordidas
Podendo até mesmo me matar...
Não me abandone quando for vítima de cobra,
Se não houver remédio ou veterinário,
Não se acanhe em chamar um rezador ou benzador,
Pois a fé e a energia da vida operam milagres !
Não me descarte caso perca um olho, torne manco ou rengo
Trabalhando para você ou sob suas ordens.
Nunca, eu lhe suplico,
Me agrida ou me espanque
Quando não entender o que quer de mim !
Jamais use o chuvisco ou arreador para me repreender.
Não aperte por demais o cachimbo em meu focinho
O laço entorno do meu pescoço, até que me falte o ar.
Não me execute com a argola do laço!
Não me porreteie na cabeça !
Não use o choque elétrico contra mim !
Mas me dá uma oportunidade de lhe compreender.
E, quando não for obediente ao seu comando,
Vê primeiro se algo não está errado
Nos meus arreios, no freio
Ou espinho maltratando meus cascos.
Se não há cobra ou onça de espreita
Se não há gente de tocaia na estrada...
Não me entregue na mão de guris ou borrachos.
Pois os primeiros na força da infância
Tem o poder de exaurir nossas forças
Em infindáveis brincadeiras, correrias e galopadas.
E os segundo, não precisa se explicar...
E, finalmente, quando a minha utilidade se acabar,
Não me deixes morrer de fome ou frio
Num rapador de fundo de invernada,
Comido aos poucos pelos caracarás.
Tendo os olhos arrancados pelos urubus.
Ou à míngua , caído sob uma chuva fria,
Sendo lentamente devorado pela formigas...
Nem me venda ao mioleiro ou para alguém cruel
Para que morra lentamente torturado pelo serviço pesado
Ou pela fome, já que sem serventia para trabalhar.
Mas bondosamente, meu amigo, dono e senhor
Sacrifica-me, imola-me, sangra-me !
Ofereça minha vida ao seu Deus,
Ou meu corpo a nossa Mãe Terra ....
Que o recompensará para sempre.
Porque se você for antes de mim
Com certeza seus parentes me imolarão
Para não chegue a pé na Tolderia Celestial !
Não me julgue irreverente se lhe peço isto,
Mas me dê oportunidade de partir com honra
E estarei servindo ao meu dono, amigo e senhor.
E quando minhas carnes tiverem separado dos ossos
Pinta meu crânio com cores vivas e ornamenta sua casa
Coloca-o em lugar visível e de destaque
De modo que aqueles que verem e perguntarem
Poderá dizer com respeito e orgulho,
De quando fomos companheiro de caminhada
E lá na Terra Celestial dos Cavalos,
Darei relinchos e corcoveios
Pela satisfação de ter servido
Um VERDADEIRO HOMEM.
Marcus Antônio Karaí Mbaretê Ruiz
Glossário
Soga = corda de couro curtido ou de sisal usada para se atar o animal de monta a um poste, palanque ou arbusto.
Maneador = corda de couro curtido usada para amarrar animais, manietar, atar as mãos, o mesmo que manietador .
Corixo ou corixe = canal que liga as águas de uma lagoa ou baía a um outro curso de água, um rio.
Corcoveio = ato de corcovear, pinotear, saltar dando pinotes
Tolderias = reunião de toldos, antiga habitação dos índios da Nação Guaikurú feita com cobertura de peles de animais, no início de cervos e veados, depois de gado vacum.
Cincha, cilha ou barrigueira = objeto usado sobre o arreio para segurá-lo no lombo da montaria, composta de barrigueira, látego e travessão.
Manotaços = ato de manotear, de bater com as mãos (patas).
Mioleiro =comerciantes de animais cavalares, asininos e muares que os compram para enviar a frigoríficos. Diz-se miolos dos cavalos velhos, doentes , com AIE que devem ser abatidos .
Borracho = palavra de origem castelhana que significa bêbado, embriagado.
Bagual = selvagem , animal inteiro não castrado, garanhão
Cuiudo , coiudo = o mesmo que colhudo, aquele que tem colhões, que tem saco, o animal inteiro, não castrada, o macho
Rengo = o que manca de uma pena, o coxo .
Manco = diz-se do animal que possui um defeito nas pernas, que manqueia, rengueia.
Troncho = animal que perdeu parte da orelha ou as tem defeituosa por acidente, bicheiras, mordidas de cães.